segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

tELúRiCo



telúrico, vejo vozes
escuto luzes rompendo, em passos,
a escuridão de pedra,
vejo musas voando de pernas pro ar
vejo mais e mais onde mais não há.

e ainda sorvo a água nas mãos
tateando o vento e mastigando o líquido,
vou assim sorrindo das dores e do parto
vou sorrindo assim do canto do pássaro

que nem voar ainda sabe e só tem fome de comer
o que a ninguém apetece, de crescer para o que nem conhece
pra singrar os céus ao nascer do sol e empoleirar-se nas nuvens
de sonhos que ninguém quer mais sonhar!

telúrico, visito gomos de felicidade açucarada,
diabéticas doses de refrigerante pra alma!
bebo pra aliviar o calor dos fornos das caldeiras do inferno
que ardem em cada coração sob ordem de despejo.

Isso, isso mesmo é o que vejo!
e do vapor que sobe a cada gole,
como das drogas que se aspira e não se engole
descanso o corpo ao lado de poemas: minha prole.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Caminhante


Caminho como quem apanhou:
- carcomido, alma sedada, sem sentir.
O que vês agora, aquela que me amou
Consumiu até quase tudo se esvair!

Agora amo apenas com cuidado
Que o que restou me é pouco e caro:
E se num rompante não sou mais levado,
É porque o amor em mim é artigo raro.

E digo baixo: como quem tem medo de ferir,
Porque na dura carne volta agora o sangue a fluir
E sinto dos escombros de tudo que esteve a ruir
Minhas pernas, meus olhos e uma chama surgir.

Desse fogo claro, quente e tremulante
Que atiça o medo e espanta o amante
Vivo olhando as sobras e o levante:
Será fogueira um dia? Quem sabe adiante.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O rio



Saio sob o sol e descanso sob a sombra das palmeiras, que me entrecortam como entrecortam-me os pensamentos do que já foi. Olho o rio – lanço em suas águas os últimos pedaços de amor que sobraram em mim e acolho o vento que passa, respiro a umidade do rio, admiro o mangue e o lixo que passa. Quantos já não jogaram aqui também os seus pedaços de amor? Não seriam esses escombros que bóiam? Impossível saber - pedaços de amor não são amores...
E saber isso, depois de tragar o último gole de um copo de cerveja já quente – quente por obra do sol incidente, acidentalmente incidente- é salgado como morder a própria língua e ver escorrer – por obra da dor- a última lágrima de crocodilo que poderia nascer de um sentimento assassinado, mas não nasceu.
Sorrio para mim mesmo. Passa pelo rio, flutuando, uma caixa de geladeira.
Os de coração gelado também amam?

domingo, 11 de outubro de 2009

Max Beckmann


Max Beckmann, pintor, escreveu o seguinte texto sobre a I Guerra Mundial, na qual foi obrigado a combater ao lado do exército alemão. Um dos textos mais belos que li nos últimos tempos. Um dia seremos arrastados à guerra, é certo. Mas ainda teremos a opção de não aceitá-la em nós mesmos.

“Eu fui através dos campos para evitar ruas retas, junto com as linhas de fogo onde as pessoas estavam atirando de uma colina pequena, que está agora coberta com cruzes de madeira e filas de túmulos ao invés de flores da primavera. Na minha esquerda os tiros tinham uma explosão aguda da infantaria, na minha direita dava para se ouvir tiros esporádicos de canhões trovejando - e acima o céu estava claro e o sol radiante, brilhando acima de todo o espaço. Estava tão lindo lá fora que mesmo o não-sentido da morte enorme - cuja música eu escuto de novo e de novo - não conseguia perturbar meu grande prazer!”

Max Beckmann.


P.S: A pintura desta postagem é do italiano Giuseppe Veneziano.

À Max Beckmann


Uma hora ou outra seremos arrastados à guerra – é certo. Não importa o quão desinteressados possamos ser. Uma hora iremos à guerra. E lá, armados com armas que nos deram os nossos irmãos, esqueceremos do que nos repugnava e nos causava ojeriza. E nós mesmos, felizes por estarmos em guerra e por dar uma satisfação à indignação de nossos irmãos, aprenderemos a guerra como se ela fosse nossa. E nos aviltaremos, perderemos o sentido de nós mesmos pela guerra, sentiremos o cheiro da podridão de nossos irmãos que agora é nosso cheiro também. Eles nos louvarão e será maravilho. Agarrarão nossos fuzis e atirarão para o alto as balas que não precisaríamos atirar. Anunciarão as mortes sob as quais tivemos responsabilidade, como troféus, e nós nos lembraremos dos rostos de cada corpo abandonado, como pasto de urubus ou como glórias necessárias. Choraremos nos braços de nossos irmãos, sem saber, é certo, se com remorso ou orgulho do dever cumprido. Nós, é certo, nos acharemos invencíveis. Nós, será claro, poderemos nos achar invencíveis. E beberemos a nossa invencibilidade esquecendo alguma coisa. E nos embriagaremos confundindo a felicidade com o torpor da vitória. Sim, nos esqueceremos, é uma pena, do sorriso, e nos defenderemos atrás de nossos capacetes, agora sujos e cheios das flores que nossas incógnitas mulheres, na multidão emocionada, nos jogam.
É certo que, em um momento ou outro, seremos arrastados à guerra. E lutaremos pela nossa honra - honra dos nossos irmãos. As crianças nos agradecerão sem saber o que é a guerra – e terão vontade de estar lá. E se alistarão nos exércitos das guerras de outros irmãos. É verdade que não quisemos ir à guerra. Tomávamos cerveja no bar da esquina todas as sextas-feiras. É verdade. Mas fomos arrastados à guerra. Não queríamos. É certo.
Vestimos, no entanto, o uniforme, empunhamos, outrossim, o fuzil, enchemos de água nossos cantis e de motivos nossos corações para que assim a nossa guerra fosse mais justa que a de nossos inimigos – inimigos de nossos irmãos – como se a justiça, de alguma maneira, pudesse vencer guerras. Puxaremos gatilhos, leremos cartas sentimentais de nossas presas abatidas (aquelas amassadas nas mãos dos soldados de Hollywood) e ainda assim as guardaremos para enrolar o próximo cigarro.
Nos acharemos justos, olharemos o sol que nos brilha sobre os olhos sem nos ofuscarmos – sim! Somos grandes e invencíveis - e assim singraremos os campos sob o som dos canhões altaneiros, seremos saudados por salvas de metralhadoras e olharemos, ainda, nos flanqueando, as colunas de prisioneiros mal alimentados que nos olham com piedade – a nós?
Uma hora ou outra seremos arrastados à guerra e sentados sob as tampas dos caixões de nossos irmãos, depois de finalmente dormirmos mais que seis horas seguidas, lembraremos de como é bom fumar um cigarro enrolado com as cartas sentimentais de nossas presas abatidas.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Encontro Marcado



O encontro está marcado. Não espero outra coisa senão encontrá-la. O relógio anda. Sob a marquise enlodada e mal pintada sinto o vento da noite passar - e escorado em uma cadeira carcomida a espero – nada mais. No porto apitam os navios que se despedem da terra em um longo e sonoro adeus. Nas calçadas atulham-se prostitutas que vêem no barco que desaparece na escuridão mais um ganha-pão que se distancia – terão fome amanhã?
Perto dos postes, sentados em tamboretes, guardadores de carros distraem-se jogando dominó à dinheiro e fazem vales nos fiteiros próximos, apostando no próximo carro que estacionará na rua, para pagarem suas dívidas. A noite cai mais profundamente - cessam as buzinas, fecham-se as lojas. Ainda a espero, agora sentado em um bar de marinheiros, onde pululam os idiomas e os risos de álcool e sarcasmo. Mulheres garantem o amanhã, vendem suas carnes com cheiro de sal e do homem anterior, a que elas serviram. Observo. Sinto um falso escárnio da vida. Um certo moralismo, um falso gosto amargo na boca, uma vontade de vomitar. Sinto uma mentira.
Observo mais. Sinto um prazer escondido se movendo e um alívio. Percebo também outras coisas, que não tinha visto. Peço uma cerveja. Ao longe duas mulheres me olham com interesse. Eu ainda a espero. A noite me abandona aos poucos e eu não vejo nada além da luz entrecortada de uma lâmpada fluorescente no fundo do bar, que aos poucos se torna baça. Elas ainda me olham. Mexo-me na cadeira e peço outra cerveja. Olhando para a rua vejo um primeiro casal que sai cambaleante - e a mulher, com os braços envoltos no marinheiro, percorre o seu bolso com o carinho peculiar das mulheres quando querem percorrer bolsos sem serem sentidas. Ele está feliz. Ficará feliz por toda a noite.
Eu ainda espero. Elas agora estão em uma mesa mais próxima e me pediram um cigarro, que eu não fumo ou não fumava – não posso precisar. Agora, meio distantes, conversamos sobre coisas sem importância, enquanto uma das mulheres vai ao banheiro vagarosamente. Ao retornar, à guisa do álcool e da embriaguês que ela não tem, senta-se em minha mesa e comenta, com um espanto malicioso, de quem sabe reconhecer um homem que ainda não está bêbado, que havia errado de lugar. Eu as convido para sentarem-se.
Lembro da minha carteira e de quanto poderia ainda ter por lá. Já não a espero.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Balada do Amante


Eu a amaria se pudesse – é certo que a amaria. Não fosse o tempo, a chuva, o vento - eu a amaria. E ainda que tu estivesses perdida em outros braços, onde enlouquecido te encontrasse ainda dormindo, te desejaria como em um desespero que só a pieguice de amar é capaz de causar. Assim, fumando o cigarro do teu amante, te observaria – quieto - e te acordaria de leve, afim de que me percebesses sem susto e com a excitação do flagrante enrubescendo a tua face alva e sem vergonha.Tu te levantarias, Consuelo, e me abraçaria ainda nua, sem compreender como eu conseguira entrar naquele quarto estranho e imundo – enquanto eu recolhia as tuas peças de roupas espalhadas sobre o espaldar da cama e da mesa de cabeceira. Uma camisa decotada, uma saia dois dedos acima do joelho, uma meia calça rasgada entre as pernas e uma presilha de cabelo que eu havia dado de presente.Eu te amaria, Consuelo. Se pudesse eu te amaria. E te carregando em meus braços, solta e mole, como só as mulheres descaradas como tu podem se deixar carregar, eu te amaria. Ainda que tu, agora fria e pálida, descansando deitada no banco traseiro do meu carro, não possa me dizer mais nada, nem abrir os olhos negros para retribuir tanto amor, eu te juro, Consuelo, por tudo que me é caro:
Eu te amaria.
Se pudesse.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Os Cães do Inferno - Capítulo XIX




Seu Nestor atravessava a rua enquanto, pela manhã, eu tirava o carro da garagem sob o olhar penetrante de Áurea, que parecia perscrutar meus pensamentos e ver, com clareza, as observações que fazia do vizinho. Olhava-o no seu vagar, na sua postura imprudente e discriminadamente semi-curva, como a um homem despido de roupas e, mesmo assim, ainda orgulhoso de algo secreto e indecifrável.
Ele guardava o segredo com zelo e cuidado – na verdade andava curvo para proteger seu trunfo, sua sabedoria de homem que consegue falar com um palito pendurado nos lábios, sem deixá-lo cair. Nestor escondia algo. Era claro. Decerto era mais uma personagem daquelas famílias onde um filho promissor, por descaminhos da vida, termina não conseguindo nada... Ou ainda podia ser...ainda podia... podia... – sim, quem diria o contrário? Podia, é certo, ser um grande homem, como a sociedade considera os grandes homens. E Nestor era um grande homem encurvado em um corpo que não comportava tanto peso, em uma estrutura dobrada pela ferrugem e pelo azar, por uma primeira mulher linda a que ele amara tanto e que pela qual tanto havia feito em detrimento deste grande homem que agora se achava pequenino, do tamanho de uma laranja talvez, como um oco no centro do seu estômago ou uma maciça porção de comida que insistia em não descer, em não ser digerida. Dessa visão do triste vizinho sobrara a laranja indigesta, paralisada e preciosa – preciosa como o momento congelado de uma grande vitória, de um grande sucesso pessoal, mas preso no passado, e por isso mesmo preciosa apenas para o seu dono, Nestor.
Assim, congelado no momento exatamente anterior ao da mudança, antes da força lhe faltar e o grito partir da garganta e a tapa lhe surgir na mão, antes mesmo do seu corpo se convulsionar, Nestor ficava ali parado em sua vida, observando como um enxadrista, quais jogadas poderiam ter evitado o grito e a tapa. Filosofava o que ele poderia ter feito, o que poderia ter mudado – alegrava-se mesmo com a perspectiva mentirosa da continuidade e da pergunta: e se ela não quisesse mais jogar? E se desistisse deste jogo e me permitisse continuar em frente, sem a maldita necessidade de jogar a próxima peça, de mover-me. Nestor perguntava-se ao andar e atravessar a rua - e até sentia a velha força voltar-lhe aos braços, a cor corar-lhe a face, o viço correr em suas veias, como se ao andar e sentir esse arroubo de luz, toda a história que não houve estivesse finalmente se aproximando dele, e lhe ocorresse que ainda havia vida em si.
Ao contrário, no mesmo tempo lembrava-se das declarações aos amigos, de que aquela situação não poderia continuar, de que aquela bela mulher a que ele ajudara tanto e que pela qual nutria tanto amor, não mais lhe servia e que, decerto ele se deitara com outras mulheres por não admitir mais a situação. Nestor deitara-se com outras mulheres porque quisera deitar-se com outras mulheres e ponto. Ele sabia disso. E apesar de orgulhar-se das desculpas muito aceitáveis que dera aos amigos, à guisa de justificativa para deitar-se com outras mulheres, sua moral cristã o denunciava, aturdia. Era culpado. Era? Culpado? Ele, Nestor? Culpado de quê? De deitar-se com outras mulheres? E o que havia de mal nisso? Fazia com justificativa! Não era o que os amigos pediam para saber? Havia motivo? Nestor o havia dado e explicado e até chorado para se justificar. Agora, seguido esse ritual, podia sim, justificadamente, trair com mulheres dignas dele mesmo, melhores em tudo que a sua, pelo simples fato de não as conhecer, de não as ter ajudado, de não as amar, de não ter nada mais a dizer delas senão que eram belas, com seios fartos e com pernas delineadas por um deus bem-humorado e de bom gosto. Era justo com seus amigos e seus amigos justos com ele. Não se discutia isso. Também eles precisavam de Nestor para escutar suas lamurias e para se justificarem, um com o outro, como uma câmara de compensação de hipocrisias, como as que existem entre os homens, por sua parte e entre as mulheres de seus lados - mesmo que não com o mesmo sucesso que a primeira. Não tivesse consciência, Nestor não perderia com essas lembranças o fio tênue de vida e luz que lhe transpassara com o pensamento anterior.
Apesar de tudo isso, parado já na margem contrária da rua, olhando agora o caminho que havia feito, Nestor ainda jogava seu jogo, ainda pensava nas possibilidades de como poderia ter sido se ainda estivesse parado no momento decisivo de sua vida, naquele espaço de tempo minúsculo que evitaria a fatalidade de seu estômago oco, do vazio maciço do tamanho de uma laranja. Mas já não podia fazer nada. Havia faz tanto tempo mandado-a embora - e sua vida tinha desmoronado de tal modo que o que restara era o seu corpo curvo apegado a possibilidade fosca de um futuro melhor que não vinha, como se o amor e a melancolia fossem sinônimos e não mais uma hipocrisia.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Os Cães do Inferno - Capítulo XVIII


Na praça, um abolicionista aponta para além da visão. Prostitutas em fim de carreira fazem ponto e precisam almoçar. Ao lado, deus tenta-lhes salvar a alma. Elas escutam, são tementes. O abolicionista escuta, é uma estátua – e um homem satisfeito grita num microfone: Aleluia! E eu me pergunto quem tivera sido convertido na praça, enquanto alguém, feliz, vencia uma nesga de fome.
Diante da pregação o abolicionista parecia imóvel. Os ditos do homem, incansável ao microfone, não queriam, na verdade, salvar ninguém. Ele próprio não queria salvar ninguém. Queria mesmo ecoar, como os pequenos homens não conseguem fazer, queria, se pudesse, permanecer no ar, com a voz vagando – e ainda mais do que mesmo querer, desejava que a sua voz fosse tão forte e potente, que não precisasse de microfone e caixa de som para que navegasse no tempo. Ele desejava ficar. E nessa gana de permanência também se movia o abolicionista, com os escravos aos seus pés, com grilhões dependurados dos braços, clamando por suas liberdades. Queria dizer algo, como não dizem as estátuas nem os abolicionistas, queria que os negros aos seus pés o deixasse em paz. Ela própria, estátua abolicionista, não estava já tão branca para libertar negros – e estava cansada disso, do seu discurso, da sua posição apontando para um lugar que não conhecia. Tinha em mente, de certo, que seu tempo era outro, de antes, ainda, do tempo em que tivera sido talhada – de quando era só rocha. Ela não queria ecoar: antes queria mesmo seu musgo, ou se houvesse jeito de não se tornar estátua, que pelo menos fosse abstrata, uma estátua pública sem tanto significado, com os seus pombos. Pensando como abolicionista que se transformara, de identidade incógnita para a pedra - ela, como o crente, tinha seu próprio discurso e, ainda, é verdade, desconfiava da existência de novos escravos modernos que tinham que ser extirpados. Mas não podia falar – e mesmo que pudesse, sabia que existem coisas que importavam pouco para o mundo.
As prostitutas mantinham-se sentadas nos bancos atulhados de miséria e sujeira. Riam banguelas umas para as outras, com seus cabelos em penteados dos velhos tempos em que eram contratadas por estudantes ginasiais na flor da idade – coisa de trinta anos passados. Roupas coladas, olhares lânguidos à luz do dia, nas veias movimentadas do tráfego pesado que corria na avenida lateral. Eram a Criação. Quantos olhares do povo que não as compreendia podiam suportar numa jornada de trabalho? Trocavam a noite pela luz - era mais seguro, parecia – e suas pouses eram as mesmas de antigamente. Suas esperas é que mudaram. Em fim de carreira, não de trabalho, atraíam para si homens de mesma ilusão – em tudo similares e sujos e reais. Neles e nelas o bulício da carne ainda comia a alma: nas mulheres com mais dignidade, nos homens - fedendo à álcool e a família que descansava em casa, à moralidade e ao prazer famélico da boca desnuda de suas parceiras.
Na noite, na morbidez da avenida que de dia pulsa - bela, na beleza real e marginal - o ciclo recomeçava com mais brilho, mais realidade. No dia a luz se esconde dela própria. As mulheres que lá estão, estão fora da vida. Não explodem em viço, em visgo, em sons. Abafam-se, como se emudecem, no tumulto dos carros, os homens, os velhos, as pessoas que têm medo do escuro. Lá, misturadas ao todo, não são ninguém definido – e estão presentes e incólumes. Na noite, onde se sorve a vida, há a vida girando na alma, há a alma sedenta de cor, há um corpo somente de vida.
Para essas mulheres, as da praça, pouco importava se deus as salvaria, como bem sabia o crente – sim: elas eram superiores ao abolicionista e ao crente. E superiores aos que insistiam na permanência. Sabiam, afinal, mover-se do centro da escuridão para a periferia da luz. Para elas o que contava era o homem em fim de carreira, eram suas salvações cotidianas.
Eu pouco posso dizer do efeito das palavras do homem no microfone sobre mim. Eram apenas fundo dramático para o abolicionista e as prostitutas – aquelas palavras davam solenidade a ambos – e isso me deixava feliz. Pelo menos podiam ser mais verdadeiras as idéias dos abolicionistas e mais digno o labor das prostitutas sob aquele som.
Mas o que me chamava atenção era o homem com microfone na mão. Tinha certeza de já o ter encontrado, à noite, no mesmo lugar onde agora pregava com tanto ardor – apontando para um, o inferno, para o outro o céu com lotes de terras a preços interessantes até para um ateu. Lembrava-lhe a face, o copo e um travesti. Lembrava-lhe o beijo comprado no rosto, a mão ousada no corpo e um grito de contentamento ao deparar-se com uma rapariga morena de seios fartos que certamente dividiu com o travesti que tivera pago antes. Lembro ainda dos três caminhando para escuridão do fim da rua - da porta de um casarão antigo abrindo-se e do lusco-fusco da claridade leve que saia à rua por um momento. Por último, recordo a sua saída – trôpego, cansado. Na mão carregava uma caixa nova. Tinha tentado cobrir com o palitó os nomes, mas sem sucesso. Lá estava escrito: aparelho de som e microfone. Era por isso que Alto Condado era linda e atraente. Suja e voluptuosa, miserável e cândida. Tão bela e contraditória em suas praças, em seus pastores cristãos, em suas noites, em seus sóis. E a cidade se desdobrava toda neste ritmo, grande que era, e se orgulhava, em cada poro, em cada beco, da sua maneira de viver, do seu caminhar de cão magro de rua – impotente e alegre -como o seu lixo.

Os Cães do Inferno - Capítulo XVII


Não, dona Milú pensara depois daquela primeira vez, não deitaria novamente com o encanador. Nem mais um cano furado, nem mais um vazamento, dizia quando ficava sozinha em casa. E seu Germino, chegando em casa à noite, cansado, loucamente desejoso de uma boa noite de sono, estava feliz por ver sua esposa tão contente, tão viva – gostava dela assim risonha, prestativa, a lhe dar beijinhos na bochecha e tapinhas nas costas.
Não mais o encanador – dizia dona Milú naqueles seus vinte e quatro anos – tão jovem e atraente! E com aquela força de vontade que ela tinha, foi experimentando eletricistas, pintores, jardineiros, limpadores de chaminé e depois o ajudante do limpador de chaminé, os técnicos de eletrônica, de forma que a casa foi se tornando um primor. De tudo tinha: boa pintura, chaminé impecável, gramado de dar inveja, iluminação perfeita. Um exemplo de casa feliz e provida de parafernália eletrônica de última geração. Para satisfazer os desejos da sua mulher que reclamava sempre dos problemas de encanação em casa, onde os técnicos dessa especialidade de serviço nunca mais entraram novamente, seu Germino, tão bom marido e preocupado com aquele problema que aturdia sua mulher, resolveu fazer, aos domingos, enquanto o jardineiro, aquele trabalhador tão assíduo ia tratar do seu jardim, um curso de encanador e passou, ele próprio a cuidar dos vazamentos esporádicos da sua casa. Tivera tornado-se um mestre na encanação e dona Milú ficava feliz em não ter que chamar um encanador de novo ali. Talvez temesse fugir com um ou se ver vítima de chantagem... Só tinha em mente uma coisa: seu Germino não merecia nenhum dos dois, nem a sua fuga, nem a chantagem. Por isso evitava definitivamente. Era uma mulher justa.