terça-feira, 25 de novembro de 2008

Os Cães do Inferno - Capítulo XV


XV

Tivera saído pela manhã com o intuito de plantar. O fato era que minhas rosas, antes vistosas e vermelhas, agora se mostravam fracas e quase movediças. As suas pétalas, que antes bailavam no vento, de um vermelho vivo e contagiante, agora não passavam de uma mancha disforme pendida de um talo verde como uma mulher enforcada - sim - como uma mulher que saindo para um jantar com o seu vestido vermelho, encontrasse a única verdade que a pudesse matar pelo simples fato do seu conhecimento.
Assim descobrira a verdade da minha rosa. Cavei suas raízes até deixá-las a mostra. Vi, por sob a rede de bocas famintas, ossos limpos, desnudos de carne, ossos de animais, de gatos, ou de cães até. Vi que não se nutria de adubo, de esterco, ou da própria terra que a mantinha erguida e onde o seu predadorismo se escondera por tanto tempo. Se alimentava de carne - e agora eu lembrava o quanto odiava minhas rosas e o quanto tivera pago para amá-las. Quantos domingos tivera perdido, quanta vida hesitara em viver em meus dias solitários de poda.
Descobria, agora, invariavelmente, a verdade da minha rosa e podia enfim, amá-la plenamente e revolver sua terra, cheirar as suas flores com outro instinto que não o de antes, e corta-lhe os galhos com um prazer penal que não me percorria aos domingos.
Assim, empunhando a pá na mão resolvi que a roseira deveria continuar. Joguei novamente terra nas suas raízes, podei os velhos galhos e fiz ortodoxamente o que qualquer jardineiro faria para que um planta se revitalizasse.
Depois retirei uma muda e percorri a distância que dividia a minha casa do casarão branco. Um frio me afagou a espinha ao mesmo tempo em que a idéia de alimentar a nova roseira do casarão branco com o que tivera visto a alimentar durante todo este período, crescia. E nesse mesmo momento quase senti felicidade por ter-me ferido num espinho e ver meu próprio sangue escorrer até as raízes que o acolheram e o sorveram.
Ao entrar no casarão, por aqueles mesmos portões férreos - portões pesados e enferrujados que pereciam longamente nas estações do ano - percebi imediatamente que a resistência esperada para o esforço de abrí-los foi totalmente vencida por meu desejo de entrar. Minhas mãos sujas empurraram com força incomum o portão que se viu rompido por meu corpo e teve, as antes intransponíveis trepadeiras que se entrelaçavam a ele, dilaceradas, com suas folhas caindo por sobre meu corpo como num choro, e seus ramos me afagando a face e se torcendo nos meus braços e peito como num frenesi de dedos e mãos estranhas. O que se seguiu foi um ranger de dobradiças velhas e desusadas. Um grito agudo e longo que durou o curto espaço de tempo em que estive deslocando o portão para poder passar. Depois pude perceber o pó enferrujado que caía das barras da grade - um pó vermelho e miúdo que se esvaia no chão deixando uma mancha amarronzada e seca. Então eu passei - e o fiz lenta e lamuriosamente porque desejava sentir, mais uma vez, a mesma sensação estranha que me tocou quando forcei-me contra o portão - e depois fechei a curta passagem por onde entrara. O rangido foi forte e se uniu ao barulho do bater do ferro contra o ferro, do metal contra o metal, que ecoou longamente até que morreu surdo sem que ninguém além de mim percebesse.
Então eu andei com um terror pressionando minha cabeça. Tinha um pavor incomum que me acompanhava, lado à lado, como minha sombra que se mostrava mais forte neste dia de Sol. Tivera visto dias antes, dois cães entrarem e desaparecerem dentro do casarão. Onde estariam agora? E a Camponesa? Por que não me recebia? Tudo me parecia perigoso. Talvez, dentro em pouco, me encontrasse nas mandíbulas dos cães ou, já sem perceber, estava morto e andava como uma alma displicente pelo jardim do casarão. Mas não. Não estava morto. Caminhava devagar a procura de um lugar apropriado para minha cria - minha roseira. E tinha a plena sensação de que finalmente o encontraria nas terras frescas e femininas do casarão.
Por fim, plantei a muda no jardim do casarão com a certeza de que vingaria. Com a certeza de que me daria flores mais vistosas do que tivera dado a roseira do meu jardim. E o sabia porque tivera sido plantada num misto de sangue, alegria e tremor - e para mim, como para a roseira, isso se estava tornando essencial. Tornava-se o próprio júbilo da noite e das flores. Tornava-se, como numa explosão, o fogo, o estrondo e o silêncio - a calmaria.
Abandonei o jardim do casarão com a impressão clara de que fora observado por minha filha, ou até pela camponesa que nunca se mostrava pela manhã. A verdade é que desejei furtivamente ter sido observado neste dia, como se o meu prazer pelo perigo estivesse encarnado nos olhos da minha filha, da camponesa ou dos dois cães possivelmente escondidos dentro do casarão. Mas não - não ousaria procurá-los - não faria do meu prazer uma certeza. Não naquele dia.