sexta-feira, 20 de junho de 2008

Os Cães do Inferno - Capítulo XIII


XIII


Ao chegar no Banco de Alto Condado, onde eu era gerente, olhei a minha volta - vi a minha mesa, a foto antiga da cidade de Alto Condado, de quando o banco havia chegado no local e, por fim, a minha cadeira. Depois percorri a sala e mirei, da janela, a nova cidade de Alto Condado - como havia mudado! Igual apenas poucas coisas contadas à dedo: duas igrejas católicas, com suas cúpulas brilhantes, a prefeitura no prédio centenário e sua fachada branca e bordô, a igrejinha gótica de dona Milú, com aqueles vitrais coloridos, a praça do Retiro, com uma estátua em bronze - aliás muito suja de cocô de pombo - de um homem que nunca tive a curiosidade de saber quem era, uma rua com o asfalto cortado pelos trilhos dos bondes e uma estação desativada de trem. Eram os pedaços que sobraram da antiga Alto Condado. Depois, olhando uma propaganda do banco, que estava presa na parede da minha sala eu li: Com o desenvolvimento e a chegada do Banco de Alto Condado tudo mudou: deixe essa mudança entrar na sua vida também! Abra já uma conta! - no cartaz publicitário existia uma foto velha e uma nova pra mostrar a diferença. E eu disse para mim mesmo: desenvolvimento?!
Então veio o subgerente que assumiu o meu posto enquanto eu estava doente. Observou-me durante um tempo, enquanto eu olhava ainda, o cartaz publicitário e perguntou-me:
- Mudou o Natal, ou mudei eu? O senhor se lembra desse?
Virei de súbito e continuei calado. Então ele prosseguiu.
- Talvez não... já faz algum tempo. Aquela propaganda onde eles mostravam uma agência antiga do nosso incrível Banco no Natal e depois uma nova agência também no Natal. Pra mostrar a diferença, entende?
- Ah sim... claro que lembro...
E novamente o silêncio imperou.

Então ele cumprimentou-me e disse que havia sido muito difícil conduzir o banco sem a minha liderança. E eu pensei: que tristeza. Nada além de mentiras. Não passava de um tratante que desejava, de longa data, ocupar o meu cargo no trabalho - e o falo com uma certeza dos que não tem mais dúvida alguma da desconfiança. Já, inúmeras vezes, pude escutar diretamente da boca do próprio Luís, o que pensa de mim. Pena que não tinha coragem de dize-lo na minha frente. Talvez aí, encontrasse, pela primeira vez, algum consolo e prazer ao escutá-lo uma vez que fosse corajoso. Descobria sempre essas revelações em conversas de banheiro, onde Luís expunha, com outro subalterno, toda a sua indignação invejosa para fora com uma força inimaginável. Triste Luís. Não sabia ele que, algumas vezes, eu encontrava-me oculto num biombo, ou sentado numa privada. Lembraria agora, até o suspiro que dava ao terminar de trucidar-me - era longo e libertador.
Na verdade, de todo o banco, só poderia excluir da definição dada a Luís - o sub gerente, o auxiliar de serviços gerais, seu João, e a minha secretária, dona Carmen. O resto se encaixaria, sem brechas, no tratado dos interesseiros, que davam do bom dia até o boa noite por pura burocracia formal, para agradar os superiores. Seu João não. Se estava com raiva não me dava bom dia quando eu passava. Ele ficava amuado no canto, com a vassoura na mão e o cachimbo velho pendido na boca, quase caindo. Resmungava que tudo era uma merda e quando eu dizia “bom dia seu João”. Ele respondia macambúzio: só se for pro senhor! Então eu saia rindo.
Com a dona Carmen era a mesma coisa:

- Bom dia dona Carmen.
- Pra quem, Doutor? Eu mal consegui dormir essa noite com o ronco do meu marido no meu ouvido e estou quase desmaiando aqui. Só vim trabalhar, porque se eu falto, me tomam o emprego. Aí, na outra semana, se eu passo aqui, já têm uma outra secretária mais bonita, loira e tudo...
- Até que não seria uma má idéia...
- Só o senhor pra me fazer rir, mas a verdade é que, se eu falto...

E dona Carmen falaria por mais duas horas sem perceber que me contou todos os seus problemas de todas as noites mal dormidas depois do décimo ano de casamento, e que se não suportasse tudo isso - relativamente calada - perderia o emprego. Então eu seguia para o meu escritório feliz - sim. Feliz - porque pelo menos três vezes por semana podia descobrir, no início do meu dia, que se seu João ou dona Carmen sentissem raiva de mim ou ódio, eu ficaria sabendo.

Os Cães do Inferno - Capítulo XII



XII

Também, como dona Milú, passou a vir à minha casa uma outra vizinha que morava na terceira casa da esquerda. Uma senhora gorda que tinha um marido desempregado e um filho gordo. Era D. Zulmira, Seu Nestor e Lula, o menino gordão. A mãe era quem sustentava a família fazendo doces que o garoto certamente comia na sua maioria. Quando vinha em casa, sempre trazia alguma coisa para oferecer e passava a manhã conversando com minha mulher, talvez na esperança de que, em algum dia, ela fizesse um grande pedido de doce que pudesse ajudá-la a levar a vida com mais facilidade. Era uma mulher dos seus cem quilos que parecia ter na garganta um alto falante e sempre ria fartamente com toda a força, até ficar vermelha - se sacudindo toda e depois tossindo pra tentar parar de rir. Tudo nela era demasiado grande - seios grandes, bunda grande e batida, decote grande, braços grossos demais, pernas de elefantíase descomunal. O filho a acompanhava no tamanho. A cara rosada, bem esticada e bochechuda. Tinha uma boca pequena, mas uma voz alta e fina. Os dedos das mãos eram de anões e sua barriga era enorme como os peitos da mãe. Assim como a mãe, vivia queixando-se de calor e era viciado em coca-cola - às vezes chegava a pensar que ela trazia os doces em troca dos litros de coca-cola que havia na minha geladeira. E quando o menino pedia para repetir o copo a mãe dizia:

- Só mais esse viu, filhinho?
Ao que o menino respondia rindo:
- Tá bom mãe - com aquela voz aguda e alta.

Então Heloísa enchia mais uma vez o copo do garoto e isso se seguia repetidas vezes até que acabasse a garrafa e a mãe dissesse por fim:

- Meu Deus, veja só! Acabamos com a garrafa! Já está bom Lula.
E Heloísa dizia:
- O que é isso Zulmira!? Deixe o menino se alimentar!

Então Áurea descia as escadas e procurava a coca-cola e não a encontrava em lugar nenhum senão na barriga de Lula. Eu, da escada, apenas ria e contava os segundos para ver Áurea passar por mim como um foguete praguejando contra a nova visita. Era quando chegava Nestor procurando a esposa que saíra de casa duas horas antes, mas que ele só sentira falta nesses últimos três minutos. Barrigudo, beberrão, com a barba por fazer há quatro dias - e que só faria quando sua esposa o obrigasse - um palito de dentes preso nos lábios e o rosto excessivamente oleoso, como se não o lavasse já há muito. Andava sempre com um palito na boca, e podia falar qualquer palavra com ele lá, sem nunca deixá-lo cair no chão - como fez questão de demonstrar-me quando veio pela primeira vez em minha casa. Pobre homem - agora eu sabia porque não conseguia emprego. Eu poderia dizer que não trabalhava desde os quatro anos de Áurea, e constatando que minha filha tinha dezesseis, quase dezessete anos, afirmaria que Nestor não trabalhava há doze anos. Essa era a sua profissão. E eu sentia a desgraça encarnada nele. Mas sua esposa, toda vez que o via, enchia-se de vida e, apesar de Nestor não ser mais do que um pobre desempregado, aquela mulher gorda e ensebada, virava outra, e seus olhos alagavam-se de lágrimas felizes até que ela falasse:

- Esse é meu homem! Já vou voltar querido.
Ao que ele respondia sorrido.
- Já tá quase na hora do almoço amorzinho. Vamos indo Lula.
- Ah pai. Espera eu ir no banheiro.
- Nada disso. Vai lá em casa mesmo.

Depois iam embora. Zulmira toda orgulhosa, Nestor arrastando o menino pela orelha, e Lula com as calças completamente molhadas do que antes fora coca-cola.