segunda-feira, 21 de maio de 2007

Os cães do Conselheiro e Os Cães do Inferno

Aqui eu vou publicar alguns contos e trechos do livro que estou escrevendo "Os cães do Inferno". Aí abaixo segue um pequeno trecho em que o pernonagem principal - sem nome - analisa a vida dele com sua esposa, Heloísa. Em breve espero estar enviando algum conto, que postarei em partes, como é a preferência do esquartejador.

XXX

Tudo começou a mudar rápido. Ela parecia ainda tão bela - como, de fato, o era – mas alguma coisa determinantemente quebrara no quadro que pintara de Heloísa quando me apaixonara por ela há tanto tempo atrás. Não era no corpo, claro que não. Era na cabeça – como se, de repente, tivesse acontecido um estalo, o pequeno trincar no gelo do lago, que o fez perder todo o espelho frio que lhe tampava o leito. São nesses momentos – julgo eu – em que os encantos acabam e se começa a não gostar mais, ou simplesmente não se consegue mais tolerar o que antes era motivo de riso ou, no mínimo, passava desapercebido pelos seus olhos. Tudo toma solenidade. Tudo é importante e cabal e qualquer movimento fora do compasso da música – àquela bela música que tocara quando da paixão ardente – faz a tempestade desabar e o choro fluir, seja de que parte for, de quem for, por desapontamento, por tristeza mesmo de ter empregado tanto tempo com uma pessoa que você desconhecia.
O pior da constatação disso, no entanto, não é a estranheza diária, não é acordar e vê-la tão diferente do que era. Não. É a impressão medonha de ter compartilhado segredos de sua alma, que você jamais contaria a quem você não tivesse certeza absoluta de que te ama. É ver esses fragmentos seus, seus mesmo, soltos na cabeça dos outros, viajando na memória alheia. Quantas lágrimas já não foram derramadas? Quantos gritos e gemidos na noite? Foram de dor ou de prazer? A constatação de que só aquela estranha o sabe e que mais ninguém no mundo pode ter a real dimensão de cada momento passado junto à ela, é que late agora. Com ela escarnecem o mundo o seu nojo de ter, assim tão fácil, deixado sua história ruir e perder-se. Não porque tenha desaparecido – está lá para a má certeza – mas não é sua - ou é, mas poderia ser qualquer história sem fundamento, estória, que você tenha inventado no afã de massagear a auto-estima, porque só pode ser real com a ciência da estranha lá, deita ao teu lado.
Só então é que percebes que tu tens é uma história partilhada, que só quem pode dar razão a ela são os outros. Ela só pode existir com os outros e neste caso particular, só pode existir com ela. Por isso deixá-la é abdicar a minha história egoísta, porque assim a considero. Não a posso deixar porque deixaria eu próprio, por mais odioso que eu tenha sido nesses famigerados e felizes e tristes e agonizantes dias, semanas, meses, anos. Esse abandono é que me interessa. Não o da estranha que começa a acordar ao meu lado. Ela me é estranha e isso já me basta para deixá-la.
No entanto levanto da cama. Abro uma gaveta e vejo uma carta de amor e briga ao mesmo tempo, como era de costume nosso quando ainda éramos conhecidos. Lá estava escrito, no final:
“nunca esquecerei os momentos bons que você me proporcionou, o que aprendi com você, tudo. Apesar de nossas maneira diferente de pensar, te amo e superaremos tudo.
Te adoro,

Heloísa”

Talvez, esse tempo todo, o que me comovia nessas brigas, nem fosse mais a declaração de “eu te amo” ou “te adoro”. Os “eu te amo” ou “eu te adoro” são muito fáceis, se dissipam no ar, apesar de lisonjear. Há uma conta, em que tudo isso se torna zero, com o passar no tempo, como em uma soma em que você só acrescentasse o que não faz diferença. O zero como nos números é o início. É importante, mas não se pode ficar só nele se se quer alguma coisa. O que me comovia, então, nessas cartas, eram os momentos bons. E novamente vem o tempo. O tempo que só pode ser bom e só foi bom, porque era meu e dela, a conhecida paixão de outrora. Há tanta felicidade nesse tempo, que você não ousa deixá-lo para trás, não com a estranha – e assim eu permaneço aqui, parado em frente a esta cômoda, olhando para meu rosto covardemente risonho para a mulher que se acordou e que me abraça o quadril.
Quem é ela? Dormira comigo assim, sem que eu percebesse, por quanto tempo? E não saber o exato momento quando o gelo ruiu, não saber quando se tinha um lago e não mais um espelho de gelo à sua frente é que te deixa transtornado, derrotado mesmo.
E que belo espetáculo de nós mesmos vemos diariamente. Mentindo, sorrindo, gozando, comendo, conversando conversas das personagens que tomaram as vidas dos atores - mais por costume do uso que fazemos delas que por vontade das personagens de participar de uma encenação dessas. Esse, creio eu, ser o dilema de todo casal burocrático. Ou mesmo de casais que, sendo moderninhos, são burramente burocráticos, porque os modelos de seus pais são ou foram burocráticos.
Por fim, olhando para essa estranha que agora me beija a boca e toca meu sexo, concluo que quando a soma é de tempo o resultado é em cifras altas e, de fato, o que conta de verdade na hora de acabar tudo com ela é: quanto eu vou ter que esquecer para voltar a ser eu mesmo.