quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Dentro de mim

Um dia - nem sei qual dia exatamente- me dei conta do que era morrer e que morrer é algo imperceptível, acontece todo dia sem parar o trânsito, sem velório, sem missa, nem padre, nem cruz.
Eu era pequeno e sonhava ser cientista. Passava os finais de semana e férias na casa de minha avó, uma peça com jardim frontal, quintal e plantas que, na minha infância, eram um universo de insetos e possibilidades.
Minha avó havia trabalhado em muitas coisas para sobreviver. Pequena, ajudara a minha bisavó nas lavagens de roupas, maior, criando os filhos do casamento – e uma tia de fora do casamento, filha de meu avô - falecido cedo. Adulta, trabalhou como ajudante de enfermagem no Hospital Pedro II, em uma época em que não se exigia muita instrução para se realizar o trabalho nas casas de saúde. Lá aprendeu a aplicar injeções e, depois que saiu de lá, ficou conhecida no seu bairro por aplicar injeções sem cobrar nada de quem precisava. Nessa época era comum receber injeções em farmácias em troca de pagamento. Numa gaveta da cômoda do quarto ela guardava um estojo prateado de injeção com a seringa de vidro, que ela não usava mais, mas que eu, criança, de tempos em tempos, pegava escondido (ainda tenho medo de abrir alguns segredos), e praticava o que eu considerava ciência: uma raspa de tablete de comprimido efervescente de vitamina C, um tubo de epocler diluído em água para render, tudo misturado em uma tina de plástico que minhas tias utilizavam para fazer as unhas no final de semana. Estava feito o elixir que, uma vez preenchendo minha seringa de vidro com agulha afiadíssima, eu utilizava para fortalecer as plantas do jardim. Se não contasse agora, ninguém jamais poderia saber o que eu penso quando olho um vaso de antúrio branco (que era Rica-flora no dicionário de minha avó, como tantas outras coisas que só depois fui descobrir com outros nomes, como toicinho defumêro).
Aplicava em cada caule macio a minha infusão secreta, administrada com minha seringa de vidro e ficava satisfeito imaginando que as próximas flores nasceriam graças aos meus esforços e bravura em prol da ciência. Nessas mesmas plantas viviam aranhas esplêndidas, com o dorso prata e amarelo e teias caleidoscópicas esticadas entre as astes das folhas grandes e enceradas da Rica-flora. Por baixo dos vasos, batalhões de formigas cortadeiras, saúvas, formigas miúdas pretas, que na minha taxonomia eram identificadas como mordedoras e formigas sararás, que eram sararás, laranjas, grandes e bestas – boas de se pegar e de se lançar nas teias das aranhas nos caules das folhas da Rica-flora. E eu as lançava lá. Caçava-as no chão (elas não andam muito em fileiras, mas desorganizadas pelo chão), de modo que eu tinha que sair atrás delas onde elas estavam andando desordenadas. Às vezes errava a teia e as formigas sararás escapavam. Mas quando acertava, me encantava ver o trabalho da aranha. Veloz, com um lençol branco de seda fina sobre a formiga, girando rápida com as patas traseiras até o beijo final. E aí ela voltava pro centro da teia, aguardando a próxima refeição, porque aquela já estava embalada para a hora da fome.
Com cada recanto daquele jardim, do quintal, uma história. Sabe o que eu penso sobre o pé do portão de entrada da casa da minha avó? É lá que era a porta de entrada do formigueiro das formigas mordedoras. Era lá que eu as atiçava pegando soldadinhos (insetos da família Membracidae) e colocando na porta do formigueiro. E a guerra acontecia: formigas agarradas nas asas do soldadinho, nas pernas, em todo canto dominavam o gigante Guliver. E ele tentando escapar. Em vão. Elas levavam ele túnel adentro e não se via mais nada.
Também tinha a churrasqueira e o outro lado (que era o depósito de pedras da empresa de meu pai, onde tinha uma casa e um pátio com um pé de carambolas e onde se tinha acesso a um mundo inteiramente diferente do jardim de minha avó). O outro lado era além do muro da casa da minha avó. Proibido. Para pular o muro me trepava na churrasqueira, que era antes o lugar do pé de liamba, com folhas estreladas e cheirosas, com as quais aprendi a fazer um perfume, usando o álcool que minha avó sempre tinha em casa, em cima da jarra grande de barro que ficava na sala de jantar. Aprendi que podia pegar o cheiro das coisas com álcool ainda criança. E fazia isso sempre com jasmim e outras flores (e também aprendi que o álcool pegava a cor das folhas e das flores vermelhas). Depois, numa casa de catimbó, levado por minha mãe, ao ver a árvore de liamba, logo corri para tirar uma folha e fui repreendido pela xangozeira. Tinha que pedir licença... Besteira. Soubesse ela que eu fazia perfume das liambas, num tinha falado nada. Voltando ao muro, como se faz em tudo que é proibido, eu o pulava inadvertidamente. E como lá era território hostil, levava meu companheiro para ajudar: um pinscher preto muito valente, que em tudo me precedia nas aventuras e que tinha sido meu segundo cachorro, porque o meu primeiro cachorro de verdade tinha sido um cágado (jabuti), chamado Chalalá. Coisa também de minha avó, porque meu pai não queria me dar um cachorro, já que a nossa casa já era superpovoada pelos seis irmãos.
As missões do outro lado do muro eram caçar ratos e colher carambolas para o suco do almoço. Caçar rato primeiro, porque Maradona, o pinscher, já descia do outro lado, de cima do muro, na busca dos ratos. E nós nos embrenhávamos no meio das pedras encurralando rato, ele de um lado e eu do outro, batendo para fazer o rato sair onde estava o meu cachorro. Matamos muitos ratos assim. Depois subia na árvore e derrubava carambolas maduras. Comia algumas ainda no pé e levava o restante para fazer suco.
Eu podia, decerto, continuar contando por muitas folhas ainda em branco o que se passava adiante, no quintal, com as gatas, com os brinquedos velhos guardados no quarto de trás, do alpendre de roupas, do bacamarte, de tantas coisas que estão aqui dentro, mas que eu não posso mais encontrar do lado de fora de mim. Não tem mais pé de carambola, nem ratos pra caçar, nem além do muro guarda pedras em que se embrenhar. Tanta coisa guardada de cada recanto do ontem. A cadeira de balanço e o banco pequeno em que ela apoiava as pernas. O espaço que eu abria lá para me sentar e me apoiar nas pernas - deitando a cabeça no colo dela durante a tarde inteira.
Crescendo não sabia mais das formigas, nem tinha notícias para além do muro, nem dos soldadinhos, nem das plantas, nem passarinhos e lagartixas. Aos poucos, o mundo foi morrendo para a criança. Nem teias, nem aventuras, nem companheiro de aventuras para me preceder. Nem mais colo.
Entro lá e vejo a casa silenciosa. A casa foi silenciando aos poucos. A gente não morre de repente. Nem quem morre de tiro e infarto, morre de repente. Muitos pedaços meus se foram com as formigas e com os perfumes de jasmim e as infusões de cânfora de minha avó. A quele cheiro não há mais. Olho tudo e não há cadeira de balanço. Não há banquinho em que me sentar. Nem pernas em que me deitar pequenino. A morte vem sorrateira e vagarosa. Me roubou os pedaços de meu mundo: de todo o mundo que conhecia em milímetros e em que agora sou o mais estranho dos transeuntes.
Quanta dor. Quanta saudade. Saudade do tamanho de sei lá o quê. Eu vivo um pouco nesse tempo de dentro de mim, porque ela vive lá com o menino e o pé de carambola, e o cachorro. E às vezes, enquanto estou dormindo, me apoio nas pernas dela e me embalo e somos um só descansando em paz - e ao seu jeito, é bom.
Feliz aniversário, vó.