Um
dia - nem sei qual dia exatamente- me dei conta do que era morrer e
que morrer é algo imperceptível, acontece todo dia sem parar o
trânsito, sem velório, sem missa, nem padre, nem cruz.
Eu
era pequeno e sonhava ser cientista. Passava os finais de semana e
férias na casa de minha avó, uma peça com jardim frontal, quintal
e plantas que, na minha infância, eram um universo de insetos e
possibilidades.
Minha
avó havia trabalhado em muitas coisas para sobreviver. Pequena,
ajudara a minha bisavó nas lavagens de roupas, maior, criando os
filhos do casamento – e uma tia de fora do casamento, filha de meu
avô - falecido cedo. Adulta, trabalhou como ajudante de enfermagem
no Hospital Pedro II, em uma época em que não se exigia muita
instrução para se realizar o trabalho nas casas de saúde. Lá
aprendeu a aplicar injeções e, depois que saiu de lá, ficou
conhecida no seu bairro por aplicar injeções sem cobrar nada de
quem precisava. Nessa época era comum receber injeções em
farmácias em troca de pagamento. Numa gaveta da cômoda do quarto
ela guardava um estojo prateado de injeção com a seringa de
vidro, que ela não usava mais, mas que eu, criança, de tempos em
tempos, pegava escondido (ainda tenho medo de abrir alguns
segredos), e praticava o que eu considerava ciência: uma raspa de
tablete de comprimido efervescente de vitamina C, um tubo de epocler
diluído em água para render, tudo misturado em uma tina de
plástico que minhas tias utilizavam para fazer as unhas no final de
semana. Estava feito o elixir que, uma vez preenchendo minha seringa
de vidro com agulha afiadíssima, eu utilizava para fortalecer as
plantas do jardim. Se não contasse agora, ninguém jamais poderia
saber o que eu penso quando olho um vaso de antúrio branco (que era
Rica-flora no dicionário de minha avó, como tantas outras coisas
que só depois fui descobrir com outros nomes, como toicinho
defumêro).
Aplicava
em cada caule macio a minha infusão secreta, administrada com minha
seringa de vidro e ficava satisfeito imaginando que as próximas
flores nasceriam graças aos meus esforços e bravura em prol da
ciência. Nessas mesmas plantas viviam aranhas esplêndidas, com o
dorso prata e amarelo e teias caleidoscópicas esticadas entre as
astes das folhas grandes e enceradas da Rica-flora. Por baixo dos
vasos, batalhões de formigas cortadeiras, saúvas, formigas miúdas
pretas, que na minha taxonomia eram identificadas como mordedoras e
formigas sararás, que eram sararás, laranjas, grandes e bestas –
boas de se pegar e de se lançar nas teias das aranhas nos caules das
folhas da Rica-flora. E eu as lançava lá. Caçava-as no chão (elas
não andam muito em fileiras, mas desorganizadas pelo chão), de
modo que eu tinha que sair atrás delas onde elas estavam andando
desordenadas. Às vezes errava a teia e as formigas sararás
escapavam. Mas quando acertava, me encantava ver o trabalho da
aranha. Veloz, com um lençol branco de seda fina sobre a formiga,
girando rápida com as patas traseiras até o beijo final. E aí ela
voltava pro centro da teia, aguardando a próxima refeição,
porque aquela já estava embalada para a hora da fome.
Com
cada recanto daquele jardim, do quintal, uma história. Sabe o que eu
penso sobre o pé do portão de entrada da casa da minha avó? É lá
que era a porta de entrada do formigueiro das formigas mordedoras.
Era lá que eu as atiçava pegando soldadinhos (insetos da família
Membracidae) e colocando na porta do formigueiro.
E a guerra acontecia: formigas agarradas nas asas do soldadinho, nas
pernas, em todo canto dominavam o gigante Guliver. E ele tentando
escapar. Em vão. Elas levavam ele túnel adentro e não se via mais
nada.
Também
tinha a churrasqueira e o outro lado (que era o depósito de pedras
da empresa de meu pai, onde tinha uma casa e um pátio com um pé de
carambolas e onde se tinha acesso a um mundo inteiramente diferente
do jardim de minha avó). O outro lado era além do muro da casa da
minha avó. Proibido. Para pular o muro me trepava na churrasqueira,
que era antes o lugar do pé de liamba, com folhas estreladas e
cheirosas, com as quais aprendi a fazer um perfume, usando o álcool
que minha avó sempre tinha em casa, em cima da jarra grande de
barro que ficava na sala de jantar. Aprendi que podia pegar o cheiro
das coisas com álcool ainda criança. E fazia isso sempre com
jasmim e outras flores (e também aprendi que o álcool pegava a cor
das folhas e das flores vermelhas). Depois, numa casa de catimbó,
levado por minha mãe, ao ver a árvore de liamba, logo corri para
tirar uma folha e fui repreendido pela xangozeira. Tinha que pedir
licença... Besteira. Soubesse ela que eu fazia perfume das liambas,
num tinha falado nada. Voltando ao muro, como se faz em tudo que é
proibido, eu o pulava inadvertidamente. E como lá era território
hostil, levava meu companheiro para ajudar: um pinscher preto muito
valente, que em tudo me precedia nas aventuras e que tinha sido
meu segundo cachorro, porque o meu primeiro cachorro de verdade
tinha sido um cágado (jabuti), chamado Chalalá. Coisa também de
minha avó, porque meu pai não queria me dar um cachorro, já que a
nossa casa já era superpovoada pelos seis irmãos.
As
missões do outro lado do muro eram caçar ratos e colher carambolas
para o suco do almoço. Caçar rato primeiro, porque Maradona, o
pinscher, já descia do outro lado, de cima do muro, na busca dos
ratos. E nós nos embrenhávamos no meio das pedras encurralando
rato, ele de um lado e eu do outro, batendo para fazer o rato sair
onde estava o meu cachorro. Matamos muitos ratos assim. Depois
subia na árvore e derrubava carambolas maduras. Comia algumas ainda
no pé e levava o restante para fazer suco.
Eu
podia, decerto, continuar contando por muitas folhas ainda em branco
o que se passava adiante, no quintal, com as gatas, com os
brinquedos velhos guardados no quarto de trás, do alpendre de
roupas, do bacamarte, de tantas coisas que estão aqui dentro, mas
que eu não posso mais encontrar do lado de fora de mim. Não tem
mais pé de carambola, nem ratos pra caçar, nem além do muro guarda
pedras em que se embrenhar. Tanta coisa guardada de cada recanto do
ontem. A cadeira de balanço e o banco pequeno em que ela apoiava
as pernas. O espaço que eu abria lá para me sentar e me apoiar nas
pernas - deitando a cabeça no colo dela durante a tarde inteira.
Crescendo
não sabia mais das formigas, nem tinha notícias para além do muro,
nem dos soldadinhos, nem das plantas, nem passarinhos e lagartixas.
Aos poucos, o mundo foi morrendo para a criança. Nem teias, nem
aventuras, nem companheiro de aventuras para me preceder. Nem mais
colo.
Entro
lá e vejo a casa silenciosa. A casa foi silenciando aos poucos. A
gente não morre de repente. Nem quem morre de tiro e infarto, morre
de repente. Muitos pedaços meus se foram com as formigas e com os
perfumes de jasmim e as infusões de cânfora de minha avó. A quele
cheiro não há mais. Olho tudo e não há cadeira de balanço. Não
há banquinho em que me sentar. Nem pernas em que me deitar
pequenino. A morte vem sorrateira e vagarosa. Me roubou os pedaços
de meu mundo: de todo o mundo que conhecia em milímetros e em que
agora sou o mais estranho dos transeuntes.
Quanta
dor. Quanta saudade. Saudade do tamanho de sei lá o quê. Eu vivo um
pouco nesse tempo de dentro de mim, porque ela vive lá com o menino
e o pé de carambola, e o cachorro. E às vezes, enquanto estou
dormindo, me apoio nas pernas dela e me embalo e somos um só
descansando em paz - e ao seu jeito, é bom.
Feliz
aniversário, vó.
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