quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Os Cães do Inferno


Maldição eu gritava ao perceber o que ele desejava fazer e acelerei o passo mais e mais rápido para que não tivesse êxito. Sufocava-me ainda com o cheiro impregnado do morto. Sentia-o exalar por toda a minha roupa, sabendo terrivelmente ativo o perfume que certamente o mascararia à qualquer um que chegasse perto de mim. Aquele cheiro, na verdade, sufocava apenas uma pessoa e só eu podia sentí-lo. Apesar disso, prevenia-me da presença de Luís.
Mas, impressionado, ao virar furtivamente a cabeça para trás, via-o cada vez mais próximo, como num pesadelo, os passos perseverantes do subgerente, maldito na sua obstinação de me parar, até que, por fim, alcançou-me e estacou ao meu lado começando a falar.
- Boa noite, doutor!
- Boa noite! Mas não me chame de doutor, porque não tenho doutorado para ser doutor!
- É o costume...
- Pois é. O costume...
- Até mais.
- Até amanhã

Mas por quê? Por que comigo que odiava tão profundamente esses esforços de cão vira-lata para conseguir comida de um estranho? Encenações miseráveis! Perdas de tempo. Eu jamais - sinceramente - desejaria uma boa noite para o senhor Luís. E, no entanto, todos os dias era obrigado a oferecer-lhe um “ boa noite “ seguido de um sorriso que, me custava, invariavelmente, o bom humor conseguido com a dureza sincera de dona Carmen ou até do seu João.
Eu gritava: maldição! E isso ecoava dentro do meu peito como num quarto vazio que tivera sua mobília retirada pela última ordem de uma governanta organizando uma mudança. Olhei em torno de mim, já sentado no banco do carro - pude ver os discos compactos. À distância, minha angústia voltava pela mesma porta por onde fizera questão de me perseguir para dar boa noite. Talvez amanhã voltasse. Certamente voltaria! E eu me perguntava: durante quantos anos havia sido assim? - já escutando a introdução do Bolero de Ravel ... e nem sequer tinha energia para buscar a resposta (mais por vergonha de constatar que por longo tempo, do que propriamente por medo de que tivesse sido por longo tempo).
E o carro acelerava pelas pistas de Alto Condado. Galgara de súbito o estacionamento em tamanha velocidade que não percebera que, em vez de vias livres, deveria estar parado num engarrafamento ou envolvido numa batida com vítimas fatais - mas não - eu corria, e a pista era livre e tinha um aroma próprio, e era o mar! E Ravel tocava e aumentava! Então eu fechei os olhos e acelerei. Acelerei! E brinquei com o volante de olhos quase fechados! E a música corria e aumentava! Mar - eu gritava e sentia o gosto salgado na minha boca - corria e buzinava. Sorria e gritava: é o Mar! Lambia os lábios e sentia o sal na boca! E o fazia de novo, passando os dedos nos meus lábios e lambendo-os depois. E Ravel continuava. Era o mar! Quem diria o contrário? Quem?
E eu acelerava mais e mais. E sorria como não fazia há anos e mesmo sentia a água salgada bater na minha boca de novo, via o barco lutar contra ondas que se avolumavam contra a proa corajosa da minha embarcação. Quilha cortando a água, vento solapando as velas - tão brancas que doíam na vista só de olhar. Cordas tesas, manivelas sob a pressão da força do afogueamento do mar. E de repente: descia do alto da montanha de água numa queda impetuosa. até quando resistiria?
Foi então que o carro parou na pista, sem gasolina. Tentei por duas vezes pô-lo em movimento de novo. Mas sem sucesso. Olhei-me no retrovisor - tinha o rosto cheio de lágrimas que desciam até a minha boca. Lágrimas - eu repetia mentalmente.
A música não havia acabado. Preso dentro do carro - no cinto de segurança que me apertava todas as manhãs, na roupa do trabalho, no próprio carro inerte, a única coisa que se mostrava livre era meu rosto encharcado que não veria de outro jeito senão no retrovisor, porque ele via o que eu era... um rosto que corria sem nunca chegar.
Assim escutei uma voz cantando:

Tu és um barco no mar
Sem porto pra nunca atracar
Tu és um barco perdido
Sem farol pra te resgatar!

Tua voz eu escuto de longe
Teu naufrágio já posso esperar
Os meus braços, te querem hoje
Vem aqui descansar!

Eu te canto esse canto daninho
Porque no espelho te posso mirar
Se não fosse os teus olhos torvelinho
Esse canto não ia entoar...

Marinheiro, marinheiro
Cadê tua glória, teu mar?
Onde tá o teu sal, tua vida
Pra eu abraçar?

Não te espantas com a tormenta
Com a água a te afogar
São lágrimas no teu rosto
Essas que te tentam calar!

Marinheiro, marinheiro
Não adianta desviar
Os rochedos são tão brancos
Mas eles a noite vai camuflar!

Era a camponesa. A música ainda não havia acabado quando vi, inertes na frente do meu carro, dois cães e a camponesa de costas para mim - jamais tivera ficado assim. O que desejava? Por que me ignorava ficando de costas? Então ela começou a andar - ia para o casarão branco. A música já estava se findando quando escutei os dois nomes pronunciados pela voz feminina da camponesa:

- Ninerute! Creonte!

E depois os cães não estavam mais perto de mim, mas ao lado do portão da casa branca e aos pés da camponesa que, de costas para mim, andava para a alameda de árvores pendidas, sem nunca olhar para trás.
Acordei dentro do carro, despertado por Áurea, às oito horas da noite, já estacionado na frente de casa. Ela tivera vindo verificar a sinfonia que estava escutando do quarto e, depois, só achou-me dormindo e ensopado de suor - o bolero havia acabado.