sexta-feira, 11 de junho de 2010

Mortalha



Ele não era mais que um morto
e o seu manto desgastado e roto
- uma mortalha velha e desbotada -
era sua paixão, ainda viva e sepultada!

Correra, vivera, amara e não sabia
Hoje porque mesmo morto chorava
Porque mesmo inerte ainda sofria
Por um mal que nunca acabava!

E apertando seu manto ele dizia:
- estrela da manhã, luz luzidia!
Abrandai no meu peito esta agonia
soprai em meu cenho uma alegria!

E não sendo atendido no que pedia
Molhou sua face uma lágrima fria
e no peito o coração que já desvanecia
Calou na noite uma alma que grunhia.

Ele



Ele andava com os ombros e as costas curvadas, como se fosse um condenado a quebrar pedras, ou ainda estivesse, perpetuamente, designado a olhar nos olhos o assassino de sua filha de doze anos. Ele andava cabisbaixo como um cão faria se não tivesse comido por três dias seguidos, sem que tivesse, se quer, remexido o lixo do restaurante chinês da esquina para comer restos de carne putrefeita. Ele nem andava direito, tropeçando na sombra projetada à sua frente pelo sol que já se punha diante de tanta miséria. Ele se movia com a mesma arte com que as lesmas se movem, sem serem percebidas, tão lento e igual e feio e gosmento que seus únicos legados eram a tristeza e a solidão. E esse legado, de tão seu, era a coisa mais encantadora que tinha – ele era belo porque era triste com a tristeza genuína dos que perdem o amor.
Ele também era calado – calado como quem não tem mais vontade de criar nada, como se não quisesse dizer que houvesse luz ou que se fizesse o mar. Ele não tinha mais nada com a criação, nem queria gorjear, nem cantar, nem grunhir de dor, porque até sua dor já secara e era anestesiada pelo torpor dos seus olhos que vagavam pelas coisas do mundo sem a paixão dos viventes e dos mortos.
Ele não era encantado, nem mágico, nem coisa alguma que se pudesse nomear, porque depois de tudo que ele lentamente tivera andado, foi deixando de lado e desprendendo da própria carne tudo que não tinha mais sentido algum, de modo que agora quando o vemos, não é mais nada além de um vulto.
Ele não tinha a moleza da carne dos moluscos – ele, um dia, até teve ossos. Mas agora, olhando-se para ele mais detidamente, assim como fazem os médicos legistas ao analisar um cadáver vítima de alguma moléstia desconhecida que deixa suas presas desfiguradas, podemos enxergar uma sombra bruxuleante no fundo do que lhe sobrara do seu caminhar. E assim, no relatório lacônico e desinteressado que fariam dele se veria escrito:
- Ainda não é morto. Tem alma.