quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Os Cães do Inferno - Capítulo VI



VI


Estava preso - eu dizia. Não podia fugir, nem sonhar totalmente, e com uma freada repentina, com o toque insistente do celular ao meu ouvido, não podia deixar de regressar. Então pensei: por que colocara a Für Elise de Beethoven como toque do meu celular? E descobria mais uma vez que era por que eu não a suportava e, obrigatoriamente, avançaria como um louco até que aquele piano maldito parasse- com o telefone atendido. Mas não dessa vez. Não agora. Não tão perto do campo! Era preciso sonhar -eu dizia- era preciso sonhar! E nessa hora era executado o ápice do Trenzinho Caipira e eu era dono de tudo, e o motor acelerava com o carro parado na pista deserta - quem me seguraria? Quem? Heloísa? Não, não ela! Mas o telefone tocava e tocava e tocava... e meus discos compactos haviam acabado - o que eu estava fazendo?
Alô. Heloísa? E ela me pergunta: por que você demorou a atender? E eu me perguntava agora: porquê? Ah! Porque eu estava sonhado - me vem a resposta - mas eu não diria a ela. É porque eu estava dirigindo. E ela pergunta: pra onde? Hoje é domingo! E eu pensava: realmente! Hoje é domingo. E o que é que tem que hoje é domingo? Não se pode dirigir num final de semana? Mas novamente não diria a ela. Eu estava procurando uma sorveteria... queria fazer de hoje um dia especial. Comer algo diferente. E ela pergunta: isso vai demorar? E eu pensava: demorar? Sim demoraria. Demoraria o resto de minha vida porque eu não dirigia procurando uma sorveteria, mas um campo marítimo - é, um campo marítimo! E onde ficava? Eu não sabia. Por isso ia demorar. Mas outra vez não diria isso para ela. Não amor... qual é o sabor que você prefere? E ela me dizia: Pistache! E eu me lembrava o quanto odiava pistache. Não podia ser coco ou uma daquelas misturas que são vendidas nos postos de gasolina: napolitano, creme com passas... Mas: certo. Já-já eu tô chegando com um potão de 5 litros! E ela dizia: seu danadinho! Que noite hein? E eu pensava: Heloísa não é mais tão bonita como antes. Não está caída. Mas não é como antigamente. E é claro que não falaria isso para ela. Quando chegar nos falamos - e desliguei o telefone finalmente.
O motor havia morrido. O sol escaldante fazia com que a pista de concreto à minha frente produzisse uma onda de calor - era o mar, eu pensava. E este mar marejava como os outros e também era quente como os mares que eu conhecia. Se navegasse um pouco mais certamente encontraria meu campo marítimo! Encontraria sim. Eu sei! Quem sabe se eu comprasse o Bolero de Ravel da próxima vez... haveria próxima vez? Mas novamente o carro deslizava no concreto e, infelizmente, não ia pro meu mar, mas pra minha casa que deixara pela manhã, correndo de não sei o quê.