segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Os Cães do Inferno - Capítulo IX



IX

Nada sobrara de mim, que não frangalhos e miséria. Uma bossa rasteira e lamuriosa, que pertencia a alguma época da minha adolescência, fazia-me lembrar de um velho amigo que morrera jovem e feliz - assim abria meus olhos pela primeira vez - encharcados de saudade e inveja.
Com esses mesmos olhos, percorri o quarto soturno do hospital e apreendi, como se tivesse acabado de nascer de mim mesmo, a minha própria criação.
Da janela escutava meus novos sons - de crianças brincando no parque, de aves piando, de carros batendo: nada mais. Depois uma luz entrecortava-me e eu descobria que essa luz quente e movediça não me pertencia, mas sim o escuro do quarto e aquela noite de cortinas.
Então de mim poderiam se ouvir os esperneios de um bêbado acordando num prostíbulo fétido, mas nunca os louvores de uma beata recebendo Cristo - e não me dizes Virgem Maria com um sobressalto! Eu nascia novamente de um escuro falho e causado por cortinas de linho - pesados e perolados pedaços de pano que pendiam do teto. E não da luz! Agora lembrava-me que quando saíra de minha mãe, também nascera da negridão do seu ventre e, que lá, a luz me entrecortava como aqui.
Sim: eu nascia de novo. E nascia de mim. E pulsava a respiração de um parto nas minhas mãos - mãos suadas - e eu próprio chorava minha alegria, porque não havia mãe que o fizesse por mim, e eu mesmo sentia as minhas dores, porque era eu que me rompia, do meu mesmo tamanho - não menor como no primeiro nascimento, não saído do ventre de alguém- mas saído do meu corpo, de toda sua extensão, me rasgando, inutilizando o eu que dera a minha origem e negando o nascimento que tivera de minha mãe.
Agora nascia de todo. E não de leite me alimentei neste dia, mas da minha carcaça, não de esperança nutri os meus sonhos, mas de realidade. E não da realidade que me dera o mundo para viver, mas da minha própria.
E lá no fundo ainda tocava aquela bossa. Mesma bossa que me dizia tanta coisa... e eu falava: Pai - chorando!

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Os Cães do Inferno - Capítulo VIII



Luz e luz. Branco sobre um branco maciço e sem fim. Portas lacônicas abriam-se com olhares perdidos de almas perdidas. Homens e mulheres andavam cabisbaixos. Estavam numa ponte, era esse o motivo de olharem para baixo, eu me dizia. E eu, amarrado, preso, estático era conduzido ao julgamento. Lá sentados no tribunal: a Morte, a Vida, a Desgraça, a Felicidade - acuada e franzina na última cadeira das testemunhas - e por último o Juiz que não se apresentou - coberto por um capuz à la morte. Ao contrário do que pensam, a Morte não andava armada nem vestida de preto. Era uma mulher que possuía encantos particulares e interessantes. Sua roupa era vermelha, decotada e se assemelhava a de uma espanhola em trajes de dança flamenca - com os mesmos cabelos negros, mesmos sapatos altivos, e os mesmos olhos faiscantes de um cavalo indomável - seria a Carmen de Bizet? Ela disse-me, em segredo, que gostava mesmo de matar usando a vida - e nesse momento, não pude deixar de perceber, num rompante de psicanalista, que a Morte não passava de uma amante não correspondida que roubava o próprio fruto de amor, sem no entanto ter, em nenhum momento, vida. Então, de súbito, deparei-me com uma cena triste e comovente - uma mulher sem graça, magra e apertada num vestido de chita barata estava acanhada e quieta num canto. Ao ver-me estupefato, a Morte sussurrou-me no ouvido que se tratava da Felicidade.
Caminhei em sua direção com passos encolerizados e, naquela hora, não podia deixar de perguntar a única coisa que explicaria o meu legado vivido de infelicidade. Perguntei, porquanto, por onde ela tivera andado. O que se seguiu foi um balbuciar de lábios dementes e uma resposta enigmática em alemão: Ich bin lahm, und gehe nichts! Eu nada entendi do que falara, mas vendo seus olhos encharcados de lágrimas, percebi a cadeira de rodas em que estava sentada - e eu jamais pensara que iria sentir pena da Felicidade.
Depois a Desgraça apresentou-se e veio cheia de si própria e acompanhada. Falou-me com íntima propriedade sobre minha vida, enquanto a Vida, envergonhada, ensaiava alguma coisa que me dizer, andando de um lado para o outro. Passaram-se três sóis de conversa acalorada com a Desgraça - era assim que eles contavam o tempo por aqui. Velhos e tristes momentos de que ela lembrava-se sem que eu precisasse ajudá-la. Aí então veio-me a Vida - e era uma mulher extraordinária! Mas tinha-se de conquistá-la para falar-lhe. Então ela voltou para seu lugar sem dizer-me nada. Olhava suas pernas e quadris com desejo. Ela apenas enrubescia e brechava-me pelos cantos dos olhos. O único que nem levantara a vista para me ver, fora o Meritíssimo Juiz. Talvez fosse ele o culpado de tudo aquilo.
Então ele - o Juiz - ordenou que tudo começasse a ser dito. A Desgraça foi a primeira a levantar-se e tomar o lugar das testemunhas. O Juiz perguntou-lhe o que achava de mim. Ela disse: Meritíssimo, como posso descrever uma pessoa tão agradável como o senhor aqui presente? Durante toda a minha vida, com a licença do uso da expressão - disse olhando para a Vida. Pareciam ter um caso, pois nesse momento a Vida dera uma cruzada de pernas fitando-o - convivi com ele sem maiores problemas. Um homem que não dificultava meu trabalho. É certo que tinha tudo para ser feliz. Mas ele morava em Alto Condado, a Felicidade, do jeito que anda - disse quase rindo - não conseguiria chegar lá nunca! O Juiz, impaciente disse: você já sabe o procedimento... dê a sua opinião e faça as últimas considerações para que a Felicidade defenda-se da acusação. Então a Desgraça continuou: Bem... como ia dizendo, o senhor que aqui está é um Lord como falam lá na Inglaterra - disse-o fitando o Juiz com certa empáfia velada. Não tenho nenhuma queixa representativa a pronunciar neste Tribunal.
Era, de fato, um julgamento particular. Não seguia os procedimentos que eu era acostumado a ver, ou mesmo escutar de conversas com os advogados do banco. Aqui as testemunhas além de dar o seu testemunho, acusavam – o que tornava tudo ainda mais dramático. Se pensava antes que no Último Julgamento havia presentes Deus como juiz, Cristo como advogado de defesa, o réu e o demônio como procurador, acusador implacável em busca de algumas almas perdidas, agora as coisas eram ainda piores. Em vez de um acusador, eram quatro e eles se acusavam também mutuamente, num jogo em que todos poderiam ser culpados ou inocentes – e que de alguma forma tinham que prestar contas dos seus trabalhos ao juiz; e este, por sua vez, definia, sabe-se lá com base no quê, como os seus trabalhos haviam sido feitos durante a vida do réu, além da própria vida deste. No entanto, se por um lado os acusadores eram muitos nesse processo, no outro, no Último Julgamento, segundo dizem, o advogado era filho do juiz, o que sem dúvida pesava na hora do veredicto. Bem, pelo menos era isso que eu pensava naquele momento ou, na verdade, nenhuma daquelas formas existissem na prática.
Logo que dito isto, o Juiz na sua pressa ordenou à Felicidade que se encaminhasse ao banco das testemunhas. A Felicidade, bem baixinho perguntou imediatamente: Meritíssimo, posso ficar aqui mesmo? O senhor sabe que não é possível estar às voltas por aí... O Juiz respondeu: aqui no meu Tribunal será respeitado o rito. Pode se encaminhar ao banco das testemunhas. Então a Felicidade de mal humor começou a mover sua cadeira de rodas para onde o Juiz havia mandado. Ao passar de mais três sóis - extremamente claros - chegou a Felicidade no lugar de direito e começou a falar. Então eu pensei que mesmo que a Felicidade subisse em locais altos, eu poderia não ter paciência para esperá-la - e a Desgraça sussurrou-me rindo no ouvido que esta havia sido muito boa e que moderasse meus pensamentos no Tribunal porque como Ele, a Vida, a Morte, o Juiz e a própria Felicidade podiam escutar pensamentos. Surpreso, fechei-me num silêncio sepulcral e passei a prestar atenção no que dizia a Felicidade. E ela falava: Meritíssimo, como sabe ando cansada com as chacotas da Desgraça! Não é de hoje que escuto esse tipo de acusação. Mas o fato é que não tenho verdadeiramente como defender-me ... e o Senhor bem sabe disso também. Mas parece até que gosta de ver-me sofrer, pois sou obrigada a defender-me dessa acusação indefensável em todos os Julgamentos que se fazem aqui nessa Comarca, e especificamente nesse Tribunal. Mas como sempre, venho justificar-me perante o senhor Juiz da minha falta. Bem conheces minha vida de privações... a cidade, sem acessos para deficientes, dificulta a felicidade em lugares do Terceiro Mundo. Em compensação, lá na Alemanha, Japão, Estados Unidos, tenho eu mostrado muito serviço. Não se pode executar o seu trabalho decentemente sem a ajuda desse Estado morto! Vai ver se lá na Dinamarca existe menino barrigudo com fome! Não tem um! A Falência do Estado é que é a culpada por tudo isso - e falou olhando para a Morte, que fora mencionada pelo apelido. Novamente apressando a declaração das testemunhas o Juiz mandou que a Felicidade retirasse-se o mais rápido possível do banco das testemunhas, declarando que a Morte deveria tomar lugar no banco e defender-se. Passados dois sóis havia a Felicidade retirado-se completamente da cadeira.
O tribunal era esplêndido. Com paredes recobertas por Mogno e toda a sorte de madeiras de Lei, proibidas de serem extraídas. Logo a Morte tomava o lugar já antes pronunciado. Era rápida e objetiva. Contou que seu trabalho, no meu caso, havia sido feito com vagar e prazer. Detalhista como é, não deixou escapar nenhum pormenor ao Tribunal. Pautou sua defesa no seguinte pilar: As pessoas nascem e vivem durante muito tempo. Não é culpa dela, fim derradeiro e fator que só se apresentará no fim da vida. Mas sim da Vida que persegue os vivos desde o nascimento e os deixa entediados. É por isso que quando ela aparece - a Morte - todos abraçam-se e querem partir. Acabando de falar isso, deu por fim sua explanação. Logo o Juiz pediu que a bela Vida defendesse-se.
No entremeio da locomoção da Vida, veio-me a Morte ao pé do ouvido e disse que ainda havia uma chance para mim se soubesse usar de artimanhas adulterais - e o falou fitando a Vida com fogo nos olhos. Pensei, então, que a Morte, assim como a Desgraça era lésbica, e que a Vida deveria ser ninfomaníaca. Tudo isso custou-me advertência da parte do Juiz, e olhares lânguidos por parte da Vida.
Ao sentar-se começou a Vida a testemunhar. Disse por sua vez que era manipulada pela Morte e que não era culpa dela o findar de alguém. Mas sim, que era este, fim natural de todos. Logo cruzou as pernas vagarosamente em minha frente e continuou a defender-se. Eu olhava-a como minha última chance. A Morte incentivava-me mentalmente a prosseguir no meu intento de conquistar a Vida. Disse a Vida: Meritíssimo, gostaria de fazer uma declaração que quase nunca faço aqui neste recinto: Admito minha falha perante o Tribunal. A Morte tem razão quanto ao fim de todos... mas como poderia eu manter os vivos sem vida? A vida faz-se dela mesma, enquanto que a Morte faz-se de Vida e a Desgraça do seu séquito de Tristeza e Pesar. A Felicidade anda na Desgraça para ser reconhecida e, portanto necessita dela para existir.
Tal declaração espantou a todos no Tribunal e o Juiz perguntou a Ela se queria desqualificar as testemunhas que ali depuseram. A Vida respondeu que não. Que este não era o seu objetivo. Mas que desejava pedir clemência ao Tribunal por mim e que a livrasse de um Processo posterior por essa negligência que acabava de admitir. O Juiz taciturno e nervoso pediu que a Vida levantasse e voltasse para o seu lugar, pois iria anunciar o Veredicto.
Mais três sóis passaram-se. Então a Vida levantou-se e me deu na mão as chaves do seu apartamento sussurrando: às oito lá em casa. Leve a Champanha.
O Juiz mandou que todos erguessem-se e anunciou solenemente o Veredicto: Diante dos fatos apresentados nesse Tribunal justíssimo, eu O Juiz, acolho o pedido da Vida em favor do senhor aqui presente e, condeno a Vida a sustentá-lo vivo durante mais um período, cujo o final seja apenas conhecido pela Morte, onde novamente se reunirá esse Tribunal dessa Comarca. Essa sentença deverá entrar em vigor imediatamente quando houver sua publicação no Diário Oficial de ... - falou o nome tão rapidamente que não pude escutar e pronunciou: está encerrada a Sessão.
Houve um murmurinho geral. Todos disseram que não entendiam porque eu havia ganho uma chance. Mas eu sabia o quanto iria me custar: uma noite inteira e uma garrafa da melhor champanha que se podia encontrar por aquelas bandas.