quarta-feira, 9 de abril de 2008

Os Cães do Inferno - Capítulo XI


XI

Tudo começava novamente. No espaço de um mês tivera vivido o que em uma eternidade não viveria sem aqueles jornais e aquele casarão branco com sua camponesa e seus dois cães. Voltava, mais uma vez, à tal busca que começara, antes, por curiosidade e, agora, por conta da minha própria vida.
Enquanto permanecia na cama, deitado por ordem médica, lia invariavelmente os jornais que houvera colhido nos arquivos da cidade e, depois, os que Áurea me trazia das bibliotecas quando voltava da escola. Assim passei o meu tempo consumido por fotos e textos da tragédia do Alto Condado - não demoraria a voltar ao trabalho corriqueiro e, eu já não suportaria o cotidiano agora.
Mas a recuperação, em casa, não havia sido de toda ruim. Vizinhos que jamais entraram em minha casa passaram a freqüentá-la quase que diariamente, inclusive uma velha senhora protestante que sentava-se ao meu lado durante o entardecer e ficava perguntando-me pasmada:

- como o senhor quer melhorar vendo essas fotos o dia inteiro?
- Elas me distraem, dona Milú.
- Deus me livre! Como algo assim pode distrair alguém? Leia a Bíblia!
Isso sim é distração de verdade. A vida de Cristo!

Era impossível não rir, e as tardes se passavam nessas discussões sobre o que seria mais ameno para um doente de cama: uma Bíblia ou um calhamaço de fotos e jornais velhos com histórias de assassinatos. Em outros momentos, tenho que segredar, essa situação me causaria espasmos de raiva, talvez até perceptíveis à visita religiosa, ao apanhador de almas despreparadas - mas agora devo dizer que uma nova situação se instaurara. Não que, por uma misteriosa mudança, fruto da passagem pelo hospital e da má situação atravessada, eu tivesse assumido uma religiosidade ou uma tolerância à religiosos, não. Tudo ocorria como uma concessão ou ainda mais, um estudo – para o qual minha mente havia se aberto sem que eu tomasse conhecimento para quê. Essas reflexões, no entanto, não duravam até que Dona Milú pudesse achar um salmo ou um corinto que a seduzisse o bastante para calar a boca , lê-lo mentalmente e depois alto para que eu ouvisse. Também havia momentos de silêncio em que D. Milú fechava o livro de que tanto gostava e começava a chorar - e o fazia de tempos em tempos, lamentando a morte de Seu Germino, o falecido marido que partira há dois anos. D. Milú era uma senhora dos seus setenta e cinco anos de idade, com o rosto sulcado e seco, provavelmente, por esses ataques de choro. Usava sempre vestidos longos e discretos. Era magra como um pedaço de pau e, eu não saberia dizer se isso foi durante toda a sua vida ou se só depois da morte do marido. A verdade é que tinha uma cara de sofrimento permanente, mesmo quando, de repente, conseguia soltar um sorriso daquela boca murcha e sem graça. Os cabelos - todos brancos e bem finos – ela mantinha presos por tiara na frente e livres na parte de trás, fazendo cachos de prata.
Talvez não tivesse filhos, porque ninguém nunca a viu recebendo visitas em sua casa, nem alguém dizendo ser seu parente ou algo parecido. Sua vida era seu marido e, com sua morte, os cultos. Ocupava seu tempo com chás beneficentes, trabalhando na creche da igreja - fazendo atividades que limpavam a alma - como ela gostava de dizer quando lhe batia uma felicidade num rompante.
Depois que a conheci, da janela do meu quarto, lá no alto, via-a passar pela minha calçada indo para a “purificação” pelo mesmo caminho de todas as manhãs - rua à direita, em frente, à esquerda no final - e lá estava ela sob uma cruz e uma ogiva. E eu pensava: o que poderia ter feito uma pessoa na vida para precisar tanto de limpar a alma?