segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O Amor



Eles não tinham dentes – e isso prenunciava o amor estranho que pretendiam ter. Olhavam-se furtivamente, como namorados adolescentes que fazem algo escondido dos pais. Mas uma voz do outro lado da rua gritava enquanto produzia um tom grave ao final de cada frase: mulher casada cheira à morte! Mulher casada cheira à morte! E que maldito perfume inebriava aquele semi-morto amante das ruas, um gato magro de olhos salientes e nenhum – sim, nenhum dente na boa – o que lhe dava a aparência de uma face achatada no queixo, como se a mandibula quisesse, por obra de alguma macabra experiência científica, tocar o nariz.

Ela, ela... Ah meu Deus, ela era o horror vestido de rosa e de cabelo curto empapado em alguma espécie de pasta brilhosa que dava ânsia de vômito em quem a visse – quiça em quem pegasse em sua cabeça para acariciar-lhe, naqueles carinhos que certamente teriam um com o outro.

Num recanto da rua, à plena luz do dia e deslocados de qualquer conto de fadas, os nossos amantes estreitaram-se na porta sanfonada suja de um pega-bêbo. Olhavam-se tão intensamente, tão absortos da luz e do tempo, do conhecido que os advertira do pecado, do pavor que o amor deles podia causar às novelas de cavalaria e às princesas de Walt Disney que até o mais tolo dos românticos sucumbiria ao mais bruto nojo.

Mas então beijaram-se em um beijo incólume ao desprezo. Deus parecia tê-los feito só carnes nas bocas para que não se machucassem com o que pensam os outros, para que os dentes não os ferissem como também não as palavras e os pensamentos. A saliva espalhava-se rápida no rosto de ambos, enquanto o frêmito das esquinas, das janelas, da praça, do vendedor ambulante aumentavam o quadro soturno e louco.

No rosto dos que observavam, a desfiguração de um mal-estar estava completamente desenhado. A mulher debruçada de um prédio, os transeuntes, a polícia, o porteiro – todos tinham um ar meio enlouquecido e paralisado, como que tomados de repente por uma nova lei que lhes tirava o fôlego. Só ela, só uma beata, no entanto, quebrou o bulício das vísceras e murmurou:

- Como, por obra do Divino Espírito Santo, eles podiam amar?

E ninguém soube responder.