terça-feira, 22 de abril de 2014

Novo sonho



Se o sonho é a realidade frustrada
E és em meu colo, o puro idílio...
Meu desejo só me traz o martírio
De ter tua alma de mim roubada!

Se não sonho, não te tenho deitada
Na aurora acordo ainda com teu canto
E dele só escuto a mais doce toada
Que no sibilo do beijo afoga o pranto!

E embalado assim nessa vã cantiga
Procuro na luz o teu claro encanto
E é só a sombra que no vão vinga!

E uma luz tardia brilha lá no canto!
Toco-a com os olhos: ela não te abriga
Acordo assustado: te amo em espanto!

Final do Mês


                Ela partiu - e foi como se as asas lhe tivessem sido cortadas por faca cega, como se em suas costas, antes de anjo, permanecesse apenas a falta de algo importante e esquecido. Não era acostumada a andar. Sentia suas pernas fracas para a caminhada que tanto adiou e que, agora, exigia a sua ida. Então, como algum pássaro que já não poderia voar, colocava pé em frente de pé e se esforçava, vagarosamente, para ultrapassar as distâncias que foram tão rapidamente atravessadas por um vôo cheio de ímpeto e esperança. Era preciso viver gritavam seus gênios, era preciso buscar o sentido perdido das coisas distantes, como a felicidade, a alegria e o amor.
                Ela recordava de outros tempos, coisas lançadas no fundo de um baú e que eram, enquanto ela arrumava a sua bagagem, substituídas pelas fotos novas que estavam pregadas na parede de seu quarto. De um lado retirava o primeiro beijo de sua vida, a fotografia de uma menina pequena de cabelos longos, um afago no colo, um abraço apertado... Do outro guardava uma gargalhada, um beijo apaixonado, os amigos abraçados, novas paisagens - e pela primeira vez ela vivia tudo assim junto, como se tais momentos fossem uma só vida e pertencessem a uma mesma mulher. E se perguntou antes de partir: do que são feitos os quilômetros afinal?
                Não pareciam ser mais que impressões ou ausências. Os quilômetros, enfim, não eram mais que a falta dos que ela amava tanto. Mudar-se, então era o exercício de andar, ir para longe, distanciar-se do amor conhecido, para enamorar-se do novo amor, o próximo em que os lábios dela podiam descansar e as fotos não fossem apenas lembranças de um tempo que, dividida, era duas mulheres: uma da infância com seus avós, e a de agora, madura.

                Assim ela se deu conta de que mudar-se não era apenas se distanciar quilômetros do conhecido, ou ainda, estar servida de faltas. Mudar-se era tornar-se, de um pulo, uma só. E tornar-se uma só, era, comumente, estar sozinha. Ela pela primeira vez tinha que bastar-se. Pegou suas malas pretas e seguiu para a gare: - era sempre complicado concluir profundidades no final do mês.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Uma Pedra só Coração


Ser coração, como pedra, sólido.
Maciço de rocha no vão construto.
Ou pássaro caído do céu feito bólido
Ou um risco no ar parecendo um fruto.

Uma pedra-coração, oca, púrpura
De ametista, translúcida, pura.
Não mineral, de pouca gramatura
Pedra pequena, feita mais dura.

Pedra ordinária, do chão comum
Onde pisam os pés mais avaros
Pedra no ornado de debrum.
Coração ou pedra ou peça de reparos.

Uma pedra assim tão singular
Que ainda então todos carregam por si.
Não lhes dão, nem lhes podem apartar
Feito prata da mina de Potosi.

Nem de muita valia, nem de pouco ganho
Carregada pendurada em corrente,
Por vezes nem presa, só pendente,
É a pedra que no sangue está em banho.

Clivada, circular, esférica, polida
Com o tempo rola, não é mais partida.
É pedra velha e gasta, pedra falida
Na arte de ser pedra, coração ou vida.

De pó, vermelha, lascada, ruída
Da lasca, o corte, a cor, a ferida
É parte latente da carne rompida
É pedra menor, mas não confundida

Com a outra maior, pedra-ferrugem
Que da água salgada do mar surge
Como as coisas que no mundo nunca urgem
Tal a hora que, sendo marcada, só punge.

É pedra-relógio e também coração.
É coisa lamacenta, úmida, do chão.
É matéria que não se pega com a mão.
É o tempo, a ampulheta e o grão.