quarta-feira, 2 de março de 2011

O Circo Alakazan


Eduarda trabalhava no circo Alakazan – um daqueles muitos circos que aparecem e desaparecem nas praças desertas dos arrabaldes distantes, em que nem a polícia nem a prefeitura se faziam presentes para impedir o seu funcionamento. Uma bilheteria em que uma anã vendia os ingressos, o picadeiro de palhaços sem cor, o mágico que parara no tempo com o truque batido do coelho na cartola - que nesse caso não era coelho, mas uma pomba - demonstrava o quanto aquela família estava sintonizada com o mundo atual.
Seu pai era o dono do circo. Mas isso, não se sabe ao certo, Eduarda nem pode se lembrar quando foi. Apenas que desde então sua mãe administrava tudo aquilo: o trailer da monga, o do atirador de facas, e da mulher barbada - que na verdade não era mulher, mas seu irmão. Como eles precisavam de uma mulher barbada e não havia ninguém mais peludo no circo, sua mãe mandara que seu irmão assumisse o papel para que o espetáculo pudesse prosseguir sem o desfalque da tradicional personagem. Eles não tinham animais além uma cadela magra com nome de deusa grega que gostava de latir e pular sobre Eduarda, enquanto essa treinava para seu número na apresentação cotidiana do circo. Ela era equilibrista.
Não sabia ao certo porque escolhera essa arte dentre tantas outras do picadeiro: mágica, trapezista, palhaça, domadora de cachorra indomável, animadora de plateia... Tudo, creio eu, passou-lhe pela cabeça. Mas, por fim, terminou escolhendo ser equilibrista: talvez por não saber do paradeiro de seu pai, talvez porque gostava de levar em conta as opiniões de todas as pessoas do circo, antes de tomar uma decisão pessoal – o que vinha a calhar bastante com a sua profissão.
A sua tarefa de equilibrista de circo estava em tentar exaustivamente equilibrar sobre varinhas de madeira bem finas, os pratos de porcelana que carregava em sua cabeça. Assim enfileirava em uma linha reta, como a um exército que será passado em revista pelo seu general, as varas de pau. Nas mãos os pratos iam sendo colocados equilibrados em cima das varas e depois girados de forma que tomavam velocidade e ao mesmo tempo relevo dramático para o seu número. Depois desse prato, outro igual era girado da mesma forma, e outro e outro - de maneira que ao final daquela carreira infinda de varas e pratos girando, o primeiro demonstrava cansaço, o segundo quase já não se equilibrava depois que o primeiro era colocado em movimento de novo, o terceiro perdia força e importância ao diminuir seus movimentos e o quarto quase que certamente se partiria no chão caso ela não chegasse a tempo. Então sua atividade nessa hora consistia em correr até o início da fileira e colocar em movimento, um por um, os pratos que se desequilibravam.
E ela fazia isso até extenuar-se e suar e correr do início para o fim e do fim para o início verificando cada opinião, cada prato que queria espatifar-se no chão, cada vara reta e precisa que ela havia fincado no chão do circo de sua família e sobre as quais recaia todas as suas responsabilidades de filha e herdeira do circo. Ela precisava, antes de tudo, dar o exemplo: se ela ali não fizesse bem o seu trabalho, o que poderia fazer a anã com a bilheteria e o atirador de facas com a mulher barbada?
Por isso, se pode dizer, Eduarda era uma pessoa que gostava de escutar e decidir apenas depois de ouvir a todos - e tentando, como se sua vida fosse o próprio circo, equilibrar o externo com o interno, o mundo dos outros com o seu, sem deixar cair pratos, tentando conciliar opiniões e sentimentos opostos num picadeiro que se estendia dentro do seu peito, no coração.
Sua felicidade, como era de se esperar, era comprometida com isso. Equilibrista por natureza gostava de que todos que a rodeassem estivessem felizes com as decisões que ela tomasse, como se em pedaços, eles pudessem assumir a sua personalidade e se aborrecer com algo que ela faria por não respeitar a opinião deles - ou se ela deixasse os pratos caírem. Vivia, mesmo parada, nesse exercício cansativo de correr e rodar, de comprar novos pratos de porcelana, de girá-los de guardá-los consigo.
Eduarda pensava sobre conciliação. Eduarda pensava sobre como essa palavra interessante, que ninguém mais conhecia no circo, a oprimia desde a infância, de como ela jamais soube que seu pai não havia morrido, mas que tinha fugido com a mulher do mágico e que sua mãe, desde então, tornara-se a chefe do circo. Ela pensava sobre conciliar a vida que levava e o que sabia com o que nunca saberia. Ela tentava, assim, ser feliz – e no final nunca entendeu porque não conseguira.
Morreu sem saber, assim como a mulher barbada, a sua mãe e a cadela magra com nome de deusa grega. Já a anã, herdou o circo e casou com o mágico.

terça-feira, 1 de março de 2011

A Essência do Amor



Toca ao fundo e distante um piano lerdo e triste. À tarde dois amantes, sempre sentados em duas cadeiras afastadas de um salão enorme de sua casa, esperam exatamente esse momento para levantarem-se, encontrarem-se e bailar. Não se sabe se a vizinha, estudante de piano, conhece o segredo daquele casal. Nem eles próprios sabem que eu, agora sentado no banco da praça em frente à janela deles, os vou visitar diariamente. Um cheiro de jasmim e outras flores comuns e delicadas cerca o ar com a umidade daquela hora. O tempo parece rodar com a luz amarela do final do dia, os insetos – até eles parecem morosos e querem ficar-se por aquelas paragens sentindo o aroma de algo bom e indefinido que só se pode cheirar naquele lugar, naquele preciso instante.

E olhando-os através da janela, vejo-o convidá-la para dançar como talvez fizera em seu primeiro encontro há tanto tempo. E ela, surpresa por tanto atrevimento e pela coragem daquele cavalheiro, ainda o olha assustada como talvez tivesse olhado naquela primeiro momento. Apesar disso, com um sorriso suave e calmo, aceita a dança – compreendendo que nos braços daquele homem, como em uma brincadeira, jamais sentirá medo, jamais poderá sentir angústia. Ele, alegre, a conduz rodopiando vagarosamente sua dama pelo salão de móveis afastados.

Os dois, parecia, apaixonavam-se todos os dias, há pelo menos 60 anos. Os joelhos doloridos, o sorriso na face, a delicadeza das asas de uma abelha nos passos de sua esposa, a mobília velha e as fotografias dos filhos e netos no aparador do salão. Nada daquilo lhe impunha peso, porque deslisavam girando como cataventos, com os cabelos dela voando e os braços abertos e os olhos fitos uns nos do outro.

Eles choravam silenciosamente querendo tornar-se um só, enquanto a música entrava pelo jardim, enquanto os carros paravam de passar pela rua, enquanto eu mesmo me arrepiava do outro lado da rua e me deixava tocar pelos acordes da pianista aprendiz. Não conhecíamos nada. Nem ninguém jamais soube porque eu parava todas as tardes e sentava naquele banco. Talvez nem eu mesmo soubesse.

Foi então que um dia, pela primeira vez, uma das cadeiras estava vazia. O homem, sentado no seu salão amplo, escutou a música sair do piano longínquo. Levantou-se de sua cadeira, olhou o outro lugar vazio, fez reverência e tocou a mão de algo que eu não podia jamais divisar ou descobrir o que era. Tomou-a nos braços e deitou sua cabeça em seu ombro. Apertou-a contra si, quis beijá-la e dançou com os braços estendidos em volta do vento, rodopiando e bailando e passando por cada recanto daquele cômodo. Seus olhos abertos como eu nunca vira antes, deixavam rolar lágrimas e enxergavam além do que eu podia ver.

Suas pernas mexiam e flutuavam. Ele rodava com mais ímpeto e leveza do que nunca, como se dançasse com um cristal límpido, como se evitasse quebrar algo frágil e sem conserto. Ele voava abraçado com o ar, derramando sobre a brisa suas palavra baixas sopradas ao ouvido do vazio.

Uma angústia me bateu no peito. Queria-o abraçar. Queria mesmo dançar com ele. Queria aliviá-lo, que fôssemos a cena estranha de dois homens dançando em um salão ao som de uma pianista que não conhecíamos. E naquele dia eu compreendi o que era amar.