terça-feira, 1 de março de 2011

A Essência do Amor



Toca ao fundo e distante um piano lerdo e triste. À tarde dois amantes, sempre sentados em duas cadeiras afastadas de um salão enorme de sua casa, esperam exatamente esse momento para levantarem-se, encontrarem-se e bailar. Não se sabe se a vizinha, estudante de piano, conhece o segredo daquele casal. Nem eles próprios sabem que eu, agora sentado no banco da praça em frente à janela deles, os vou visitar diariamente. Um cheiro de jasmim e outras flores comuns e delicadas cerca o ar com a umidade daquela hora. O tempo parece rodar com a luz amarela do final do dia, os insetos – até eles parecem morosos e querem ficar-se por aquelas paragens sentindo o aroma de algo bom e indefinido que só se pode cheirar naquele lugar, naquele preciso instante.

E olhando-os através da janela, vejo-o convidá-la para dançar como talvez fizera em seu primeiro encontro há tanto tempo. E ela, surpresa por tanto atrevimento e pela coragem daquele cavalheiro, ainda o olha assustada como talvez tivesse olhado naquela primeiro momento. Apesar disso, com um sorriso suave e calmo, aceita a dança – compreendendo que nos braços daquele homem, como em uma brincadeira, jamais sentirá medo, jamais poderá sentir angústia. Ele, alegre, a conduz rodopiando vagarosamente sua dama pelo salão de móveis afastados.

Os dois, parecia, apaixonavam-se todos os dias, há pelo menos 60 anos. Os joelhos doloridos, o sorriso na face, a delicadeza das asas de uma abelha nos passos de sua esposa, a mobília velha e as fotografias dos filhos e netos no aparador do salão. Nada daquilo lhe impunha peso, porque deslisavam girando como cataventos, com os cabelos dela voando e os braços abertos e os olhos fitos uns nos do outro.

Eles choravam silenciosamente querendo tornar-se um só, enquanto a música entrava pelo jardim, enquanto os carros paravam de passar pela rua, enquanto eu mesmo me arrepiava do outro lado da rua e me deixava tocar pelos acordes da pianista aprendiz. Não conhecíamos nada. Nem ninguém jamais soube porque eu parava todas as tardes e sentava naquele banco. Talvez nem eu mesmo soubesse.

Foi então que um dia, pela primeira vez, uma das cadeiras estava vazia. O homem, sentado no seu salão amplo, escutou a música sair do piano longínquo. Levantou-se de sua cadeira, olhou o outro lugar vazio, fez reverência e tocou a mão de algo que eu não podia jamais divisar ou descobrir o que era. Tomou-a nos braços e deitou sua cabeça em seu ombro. Apertou-a contra si, quis beijá-la e dançou com os braços estendidos em volta do vento, rodopiando e bailando e passando por cada recanto daquele cômodo. Seus olhos abertos como eu nunca vira antes, deixavam rolar lágrimas e enxergavam além do que eu podia ver.

Suas pernas mexiam e flutuavam. Ele rodava com mais ímpeto e leveza do que nunca, como se dançasse com um cristal límpido, como se evitasse quebrar algo frágil e sem conserto. Ele voava abraçado com o ar, derramando sobre a brisa suas palavra baixas sopradas ao ouvido do vazio.

Uma angústia me bateu no peito. Queria-o abraçar. Queria mesmo dançar com ele. Queria aliviá-lo, que fôssemos a cena estranha de dois homens dançando em um salão ao som de uma pianista que não conhecíamos. E naquele dia eu compreendi o que era amar.

Nenhum comentário: