segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O Amor



Eles não tinham dentes – e isso prenunciava o amor estranho que pretendiam ter. Olhavam-se furtivamente, como namorados adolescentes que fazem algo escondido dos pais. Mas uma voz do outro lado da rua gritava enquanto produzia um tom grave ao final de cada frase: mulher casada cheira à morte! Mulher casada cheira à morte! E que maldito perfume inebriava aquele semi-morto amante das ruas, um gato magro de olhos salientes e nenhum – sim, nenhum dente na boa – o que lhe dava a aparência de uma face achatada no queixo, como se a mandibula quisesse, por obra de alguma macabra experiência científica, tocar o nariz.

Ela, ela... Ah meu Deus, ela era o horror vestido de rosa e de cabelo curto empapado em alguma espécie de pasta brilhosa que dava ânsia de vômito em quem a visse – quiça em quem pegasse em sua cabeça para acariciar-lhe, naqueles carinhos que certamente teriam um com o outro.

Num recanto da rua, à plena luz do dia e deslocados de qualquer conto de fadas, os nossos amantes estreitaram-se na porta sanfonada suja de um pega-bêbo. Olhavam-se tão intensamente, tão absortos da luz e do tempo, do conhecido que os advertira do pecado, do pavor que o amor deles podia causar às novelas de cavalaria e às princesas de Walt Disney que até o mais tolo dos românticos sucumbiria ao mais bruto nojo.

Mas então beijaram-se em um beijo incólume ao desprezo. Deus parecia tê-los feito só carnes nas bocas para que não se machucassem com o que pensam os outros, para que os dentes não os ferissem como também não as palavras e os pensamentos. A saliva espalhava-se rápida no rosto de ambos, enquanto o frêmito das esquinas, das janelas, da praça, do vendedor ambulante aumentavam o quadro soturno e louco.

No rosto dos que observavam, a desfiguração de um mal-estar estava completamente desenhado. A mulher debruçada de um prédio, os transeuntes, a polícia, o porteiro – todos tinham um ar meio enlouquecido e paralisado, como que tomados de repente por uma nova lei que lhes tirava o fôlego. Só ela, só uma beata, no entanto, quebrou o bulício das vísceras e murmurou:

- Como, por obra do Divino Espírito Santo, eles podiam amar?

E ninguém soube responder.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Eduardo era...



Eduardo não tinha grandes amores. Não tinha nenhuma crença, não torcia para times de futebol, de basquete... Não adorava dobradinha nem feijoada. Não idolatrava a sua mãe, não sofria de paixões repentinas pela cor vermelha ou pelo verde, não odiava seu pai ou qualquer coisa que se pudesse mexer ou ficar invariavelmente imóvel. Ele não preferia calças ao invés de bermudas, nem black-tie à blazer ou chinelos à sapatos. Eduardo era como se fosse algo inventado de um pensamento malvado, como um boneco sem movimentos próprios, ou uma massa de modelar colorida, que nunca pudesse tomar forma que definisse alguma coisa sobre ele mesmo. Eduardo, eu creio, não era nem algo que se pudesse definir ao se ver – era realmente como uma idéia que se deixa de lado, um risco no quadro-negro feito de uma vontade de alguém, que jamais poderia ser ele - era como um disco de cores girando, em que era ao mesmo tempo todas as tonalidades e, no final das contas, apenas branco. Eduardo era quase essas coisas todas.
Definir Eduardo era, assim, quase impossível, mesmo estando ele ali parado e movendo-se com o vento, mesmo estando ele a falar idiomas estranhos e a vociferar impropérios e delicadezas em intonações que pouco indicavam a que se referia ou se tinha apreço ou desdém pelos outros. Não se podia, de certo, nem saber se Eduardo era dado a apreços e desprezos ou se sorria ou se tinha acabado de limpar lágrimas no rosto. Ninguém podia dizer se ele fora sofrido, se tivera sido ou era rico ou, se pelo contrário, amargurou sempre uma pobreza franciscana.
Eduardo podia ser tudo que se quisesse que ele fosse à uma primeira vista. Um grande amor, um bailarino de balé clássico, um bêbado fracassado, um empresário intransigente, um empregado extenuado no final de um expediente, um negro envolvente dos subúrbios boêmios e decrépitos, uma triste ou feliz incógnita. Era como se ele pudesse mesmo ser tudo da vontade de alguém, como em uma mágica de palavras secretas e proibidas.
Eduardo não era querido, não era odiado, não exalava cheiro, não fedia à peixe podre nem à perfumes caros colocados sobre o corpo em demasia. Era mais que isso, pensavam alguns sobre ele. Não era mais que nada diziam outros. E nesse transfigurar-se em tudo e nada, em tantos olhos velozes e cheios de vida própria, quem não quisesse nada com Eduardo, algum dia perdido, poderia notar...
Eduardo era só vontades.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Exílio



Eu tenho um terço
e uma novena pra rezar
Eu tenho uma aflição
e uma vida pra tocar

Eu tenho uma dor
- dor minha pra carregar
Eu tenho é quase nada
Nada mesmo que levar

Eu tenho uma tristeza
do tempo e mesmo do ar
não sei onde nasceu
já vem comigo, sem eu levar

E pra onde eu desterro
terra longe de se encontrar
está ela cá comigo
- comigo sem se apartar!

Eu tenho uma tristeza...
tristeza, tristeza
como uma gota que cai e cai

Eu tenho uma tristeza, tristeza
como amar como quem distrai!

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Mortalha



Ele não era mais que um morto
e o seu manto desgastado e roto
- uma mortalha velha e desbotada -
era sua paixão, ainda viva e sepultada!

Correra, vivera, amara e não sabia
Hoje porque mesmo morto chorava
Porque mesmo inerte ainda sofria
Por um mal que nunca acabava!

E apertando seu manto ele dizia:
- estrela da manhã, luz luzidia!
Abrandai no meu peito esta agonia
soprai em meu cenho uma alegria!

E não sendo atendido no que pedia
Molhou sua face uma lágrima fria
e no peito o coração que já desvanecia
Calou na noite uma alma que grunhia.

Ele



Ele andava com os ombros e as costas curvadas, como se fosse um condenado a quebrar pedras, ou ainda estivesse, perpetuamente, designado a olhar nos olhos o assassino de sua filha de doze anos. Ele andava cabisbaixo como um cão faria se não tivesse comido por três dias seguidos, sem que tivesse, se quer, remexido o lixo do restaurante chinês da esquina para comer restos de carne putrefeita. Ele nem andava direito, tropeçando na sombra projetada à sua frente pelo sol que já se punha diante de tanta miséria. Ele se movia com a mesma arte com que as lesmas se movem, sem serem percebidas, tão lento e igual e feio e gosmento que seus únicos legados eram a tristeza e a solidão. E esse legado, de tão seu, era a coisa mais encantadora que tinha – ele era belo porque era triste com a tristeza genuína dos que perdem o amor.
Ele também era calado – calado como quem não tem mais vontade de criar nada, como se não quisesse dizer que houvesse luz ou que se fizesse o mar. Ele não tinha mais nada com a criação, nem queria gorjear, nem cantar, nem grunhir de dor, porque até sua dor já secara e era anestesiada pelo torpor dos seus olhos que vagavam pelas coisas do mundo sem a paixão dos viventes e dos mortos.
Ele não era encantado, nem mágico, nem coisa alguma que se pudesse nomear, porque depois de tudo que ele lentamente tivera andado, foi deixando de lado e desprendendo da própria carne tudo que não tinha mais sentido algum, de modo que agora quando o vemos, não é mais nada além de um vulto.
Ele não tinha a moleza da carne dos moluscos – ele, um dia, até teve ossos. Mas agora, olhando-se para ele mais detidamente, assim como fazem os médicos legistas ao analisar um cadáver vítima de alguma moléstia desconhecida que deixa suas presas desfiguradas, podemos enxergar uma sombra bruxuleante no fundo do que lhe sobrara do seu caminhar. E assim, no relatório lacônico e desinteressado que fariam dele se veria escrito:
- Ainda não é morto. Tem alma.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Heitor e a roda



Heitor não queria muito – tinha certeza de que não queria muito. Só não sabia o que queria precisamente, se algo tátil ou, ainda, movediço e ensolarado. Heitor não sabia, disso ele tinha certeza. Só não tinha certeza se as borboletas eram lagartas ou se os sapos-de-rabo seriam sapos. Ele nem sabia se deveria levar uma gangorra muito à sério, porque no final das contas ela só subia e descia mesmo e pronto.

Ele na verdade preferia a roda, a girar como pião no mesmo lugar, com os pés das crianças a empurrar com toda a energia para o lado - e aquela força encantada que vinha Deus sabe de onde a jogá-los para longe dela – e Heitor tinha tanta certeza de que gostava da roda, que não compreendia porque ela o queria afastar de si toda vez que a ia rodar.

Então ele lembrou-se que a ia visitar em todos os intervalos, em todas as aulas mortas, no jardim da infância, na alfabetização e nos recreios, com o contentamento infantil e ingênuo comum às crianças maravilhadas. E ao encontrá-la, sempre acompanhado dos seus colegas, ele girava, girava e girava até ver coloridas as cores misturadas virando um branco monótono e ligeiro, que passava por seus olhos como rabiscos no caderno de caligrafia que ele pouco visitava.

Heitor gostava de girar e pensava que girar a roda a agradava – porque como lhe parecia, na sua cabeça de criança, como as pessoas tinham sido feitas para serem felizes, as rodas haviam sido feitas para girar. Mas Heitor era criança - e as crianças têm a infantil tendência de conhecerem as coisas pelo que elas nasceram para ser, e não pelo que são. Isso só os adultos sabem e mesmo assim, só alguns - e errado.

Então Heitor foi crescendo, e girando como um carrossel sem cavalos nem carruagem, girando como sempre girara na roda e sentindo, invariavelmente, sobre seu corpo, a mesma força que deus sabe lá de onde vinha, tentar jogar-lhe pra fora do mundo ligeiro e branco da roda...

Até que um dia, Heitor já desconfiado, triste até de não saber o que poderia fazer a roda de sua infância feliz, conheceu a física... Um homem adulto, sisudo e grave como um acento grave em uma palavra qualquer, lhe desenhou uma roda no quadro negro.

O homem puxou uma seta de dentro da roda que, no quadro, nem sequer girava, e era estática. Então ele perguntou em voz alta e triunfal:

- O que acontece quando uma pessoa que está sentada na roda é girada com a roda?

Heitor, antes pouco interessado na aula taciturna e cheia de setas, logo respondeu:

- É jogado para fora, professor!
- E como se chama isso? (perguntou o professor animado com a participação do aluno)

Heitor pensou em várias coisas. Isso poderia se chamar repulsa, falta de amor, mágoa da roda que não queria ser girada por tantos meninos como tivera sido na sua infância, pensou em tudo e em quase tudo. E como não vinha resposta qualquer um suspense se instaurou... O mistério de toda uma vida nas mãos daquele homem?
Então o professor continuou:

- É a força centrífuga.

E Heitor, que sempre pensara que a roda não o amava e que quem conhecia a força encantada que o empurrava para fora era deus, descobriu, enfim, que bastava um desenho e uma seta e um professor taciturno para acabar com todo o encantamento de toda uma vida.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Uma carta piegas


Escuto as correntes que arrastas nos corredores entrecortados por luzes opacas e frias... vejo tua dança lenta, teu rodopiar de vento de abril, teus olhos negros na negridão que ainda se avizinha...
Vejo o teu sorriso entre amargura, sinto uma alegria febril que não sabe se terá cura algum dia. Te amo e sinto medo do vaso que balança na esquina do quarto, ao lado da cortina que tremula e não deixa a luz entrar, de dia.
Então abraço-te vagarosamente no escuro, sem fazer barulho algum senão o do farfalhar da roupa e do calor que brota, como que fugitivo, da tua pele e da minha. Olhamo-nos agora, como espelhos um do outro, nos olhos quase fechados e cheios de lágrimas...
Há tanto a não dizer... há tanto... há tanto, que calamos no silêncio em que se comunicam as nossas almas. Deitamo-nos, entrelaçados, no chão do corredor que agora não é mais nada além de nós dois: Dos quartos escutamos rumores, arfares, solidões, outros idiomas que não entendemos. Dos quartos ouvimos outras vozes, de pessoas que não conhecemos. Dos quartos desconhecemos outros mundos infinitos como o corredor pode ser.
Desligamo-nos de tudo afim de que alcancemos mais além dos quartos, para que perscrutemos as janelas e os pássaros e os cais de portos e os navios que vieram de longe e suas gentes.
Voamos sobre os campos, sobre as copas de árvores que fazem sombra, sentimos o sol e o ar quente. Vemos verdes, azuis, pretos, brancos, roxos, lilases, vermelhos tórridos, laranjas aguados, rosas sem sal, marrons cheirosos, como não costumam ser os marrons, conhecemos, de uma vez e definitivamente, o que poderia ser o salmão que não é peixe e nos decepcionamos...
O mundo assim parece tão nosso quando estamos com as mãos dadas. O mundo assim é tão nosso...
- Mas não pintaremos as paredes de salmão.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Amara


Amara era linda, mas tão linda, mas tão linda, que eu me abestalhava completamente ao vê-la debruçada sobre o alpendre da casa amarela da esquina da rua. Ela tinha a beleza acintosa das loiras dos bordeis de madame Toussot, como um demônio banhado em ouro e de cabelos esvoaçantes e ardendo em meio ao enxofre e o desejo.

No entanto, debruçada no alpendre, parecia uma madona recatada, mãe de quatro filhos e ainda assim virgem, como só na bíblia poderia ser possível. E mesmo assim eu a desejava, desejava mesmo antes dos filhos, mesmo antes de o marido a ter abandonado, mesmo nos meus delírios mais febris e insanos – em que minha mãe acudia dizendo que eu parasse de blasfemar.

Amara não tinha marido, nem muito menos quatro filhos. Quem sabe até fosse virgem ainda. E apesar de tudo isso, de seu cabelo ter parado de voar e de o cheiro de enxofre ter se dissipado no ar, eu ainda a queria.

Filha da família mais interessante do bairro, como era natural, casou-se com o filho do médico mais influente do beco do bairro, Raimundo – que não por despeito meu, era o cidadão mais tosco e grosseiro que se poderia arranjar em duzentos metros quadrados: exatamente a área que continha metade da casa de Amara e metade do beco do médico influente. Eu, pobre coitado, mero despachante de cartório, escondedor de selos de reconhecimento de firma retroativa e de autenticação de documentos falsificados, jamais chegaria mais próximo de Amara do que o olhar que lhe largava em todas as tardes, às 17 horas, quando voltava da labuta diária para casa. Imaginava sempre o dia em que me apresentaria diante do tabelião, acompanhado dela, para sacramentar, no civil, a nossa união – ocasião em que eu selaria sua assinatura com um selo decentemente atual e original, digno de nosso amor e autenticidade.

Apesar disso, num dia de quarta-feira, distante o suficiente do final de semana, para o meu desgosto, terminei por selar e vistar o contrato nupcial de Amara e Raimundo – que nem combinavam na vida, nem no papel. Usei, apesar do pensamento mau em contrário, um selo original, porque já que ela escolhia viver com um homem daqueles, promissor, filho do médico e ele próprio medicozinho da casa amarela da esquina, o que eu podia fazer?

Voltei para casa cabisbaixo. Durante anos pensei como poderia ter sido a nossa vida juntos: eu tabelião e ela uma madona virgem mãe de quatro filhos me esperando no alpendre da casa amarela que seus pais deixariam de herança para nós dois depois de morrerem logo após nosso casamento - vida linda, linda, mas linda mesmo!

Mas isso estava tão no passado, que não era mais nada... Somente eu, a primeira pessoa do singular, com o amor no pretérito-mais-que-perfeito.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Também vou pra Pasárgada



Há ainda um trem pra Pasárgada
Nele eu vou no último vagão!
comprei o bilhete, lá ela me aguarda
E eu carrego minhas malas na mão!

Eu vou chegar em Pasárgada
Pelo caminho da contramão!
Quero encontrar com Esmeralda:
Filha do Rei, vizinha do meu irmão!

E beijá-la enquanto ela labuta
Causar no povo uma comoção
Igual a de Romeu e Julieta
que nem a de Isolda e Tristão!

Mas com Final bem mais feliz
Porque então estarei em Pasárgada
Eu abraçado com minha amada!
E será tudo como eu sempre quis.

E nessa terra única e derradeira
Temos dois filhos, Manuel e João
Que namoram as filhas de Bandeira
Sem nutrir nenhuma pretensão!

Eu tô indo pra Pasárgada
Morar na Rua Consolação
Lá eu encontro minha amada
Lá se acalma meu coração!

sábado, 20 de fevereiro de 2010

A fera e o domador


Sei que toda ferocidade defende uma doçura. É isso que quero tocar em ti. E por isso ignoro a distância, o frio, o silêncio - e observo da fera, apenas o rugido... Tenho o encantamento dos domadores nas mãos - e tu me mostras os dentes enquanto estalo no chão o chicote e, nos ares, solto a gargalhada que aguardava, silenciosa, o teu avançar de animal.

Visto, no picadeiro, um fraque colorido em amarelo e vermelho. Não tenho as feições tradicionais dos domadores de feras dos circos. Não sou sisudo, nem bruto, nem grosseiro. Não sou forte, nem anguloso, nem rápido o suficiente para escapar de um ataque. Domo com o olhar e com a paciência dos que não temem ser feridos de morte - e penetro-te a visão perscrutando tuas resistências e medos.

A platéia, inquieta, ajeita-se nos bancos de madeira procurando alguma abertura esquecida na jaula em que nos encontramos, fera e domador. Assistem ao nosso espetáculo esperando encontrar em mim um domínio sobre a fera que eu jamais poderia ter. Eu, no entanto, não me iludo. Conheço os teus movimentos, respeito a tua alma das feras aprisionadas para o espetáculo alheio... Afinal, não estamos na mesma prisão, domador e fera?

E descobrimos ao mesmo tempo, com as luzes apontadas sobre nós, que tanto eu quanto tu somos domados enquanto a música de suspense se eleva distorcida nos alto-falantes do circo: tu sobes triunfante na plataforma de madeira, e eu te dou as costas para receber os aplausos do público, confiando na tua inércia, em um movimento por nós sincronizado.

As luzes se apagam, então, e tudo se emudece, como se só pudesse existir vida na luz. Retiro do bolso as chaves dos cadeados que nos prendem dentro da jaula. Depois da encenação pública eu gostaria de te afagar o pelo, de ter-te com a cabeça de fera descansando sobre o meu colo e de suspirar - coisas que posso pensar no escuro... E tu, é certo, quereria esfregar-se em mim como fazem os gatos, deitar-se no chão e rolar em brincadeira, jogando para o alto a argola que atravessas em saltos durante a apresentação. Me lamberias até... Quem sabe?

Mas temos medo um do outro - e eu saio calado, abrindo os cadeados e os trancando atrás de mim. Tu caminhas exaltada, cada centímetro do teu mundo, afastando-se das fronteiras das grades e de qualquer coisa que possa se aproximar do mundo fora desses limites. Tu arfas como se quisesse farejar o futuro ou como se sentisse uma súbita falta de ar - te olho então, antes de ir embora.

Mas já não queres me ver.

Terminamos nossos espetáculos sempre assim:

magoados.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Ivan e a Dançarina


Ele sabia que ao nascer do dia nenhuma esperança estaria com ele – nenhuma. Por isso se despiu lentamente e banhou-se enquanto a luz do sol penetrava a sua casa – fria e lerda como costuma ser a luz no início dos dias. Naquela manhã nublada, a sensação embaçada de seus olhos mesclou-se com o cinza do céu e sua visão tornou-se opaca como as nuvens pesadas que chorariam, também como Ivan agora sob a água quente do chuveiro, chorava, antes do meio-dia.

E ele chorava por nem sabe o quê. Pela Dançarina de Jawlensky, em suas vestes vermelhas e seu sorriso perscrutador, pela mulher do vizinho, pelo filho que nunca teve – Ivan chorava pelo que poderia ser e não foi. Ivan queria pular dentro do quadro e convidá-la para dançar, queria mesmo tirá-la de lá. Mas ele não podia entrar em seu mundo – e ela ali sentada e sorrindo para ele, esfregava em sua cara que ele não podia fazer nada além de olhar – e que desse por isso graças a Deus. Ele também desejava a mulher do vizinho, e um filho com ela...

Ele queria! Queria mesmo!

Mas Ivan queria mais. Então depois de tomar o seu banho, vestiu sua melhor roupa e pegou um machado. Com ele tirou, em um só golpe, o quadro da parede e o deixou estatelado no chão de taco da sua casa. Queria ver como estava agora o rosto da dançarina em seu vestido vermelho. Como estaria? Rindo? - Por azar, a face ficara para baixo e ele não pode deter-se em outra tarefa que não golpear a moldura de madeira enquanto se perguntava mais e mais e de novo: estaria rindo a maldita?

E ele tirou dela tudo e deixou-a nua, sem margens para apoio ou sorrisos sarcásticos. Não acreditava que continuava sentada. – não isso não! Fez um monte com a madeira da moldura. Foi à venda da esquina da rua. Pediu uma garrafa de álcool e a embrulhou em papel de jornal. Depois, ao voltar para casa, prendeu a mulher amarrada a um cabo de vassoura, no centro das lascas de moldura e começou a jogar, lentamente, o álcool que tivera comprado.

Olhou-a mais uma vez - a viu deformada, torta, ondulada, comprimida entre as ataduras que ele tivera feito nela e no cabo de vassouras. Estava com medo! Sim, tinha medo, finalmente. Não sentiu pena, apesar de tudo. Acendeu um cigarro e decidiu que ela duraria, com aquela forma horrenda, não mais que três tragos.

E então fumou, fumou e fumou até que só lhe restasse uma brasa, até que cintilasse entre seus dedos aquele vermelho quente que coloria o vestido da dançarina. Ele guardou para si a última tragada de cigarro para jogar-lhe na cara, antes de lhe queimar como na inquisição, como uma bruxa presunçosa que na verdade se fazia de dançarina para lhe tirar o sono!

E ateou fogo nela – que ardia, ardia e ardia.

Jornal da Tarde – Manchete

CURTO-CIRCUITO CAUSA INCÊNDIO EM SUBÚRBIO

Uma casa foi engolida pelas chamas em um incêndio no subúrbio da cidade. O saldo da tragédia foi de um transeunte ferido com queimaduras leves e de um homem morto, provavelmente o dono da casa mais atingida, encontrado carbonizado no local. A polícia procura por parentes para fazer o reconhecimento do corpo.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Lira da Noite


Perdido na estrada e com terror
Em meio à noite cantou um trovador:
- Senhor, entregai a este pecador,
Quando houver um pedaço que for,
de amor sem mágoa e dor!

E achando que falara sem temor
Tornou a dizer com mais fervor:
- Senhor, entregai a este pecador,
Quando houver um pedaço que for,
de amor sem mágoa e dor!

E ao perceber que não ecoava o seu louvor
Disse mais alto o seu sombrio clamor:
- Senhor, entregai a este pecador,
Quando houver um pedaço que for,
de amor sem mágoa e dor!

E colhendo no caminho a mais alva flor
Falou olhando-a sem dela ver a cor:
- Senhor, entregai a este pecador,
Quando houver um pedaço que for,
de amor sem mágoa e dor!

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Ao inferno com Otelo e Julieta


Otelo queria amar Julieta – e havia tantas mulheres piores a amar em uma quinta-feira, que seus amigos não se conformariam em saber que Otelo queria, sem mais nem menos, amar Julieta.

Prefeririam, antes, que ele bebesse e faltasse o trabalho na sexta-feira, instituindo um feriadão privativo, ou ainda, fosse trabalhar de ressaca e não conseguisse olhar por mais de dois minutos seguidos para uma tela de computador. Mas em vez disso, ele escreveu um poema na quarta-feira em que o Fluminense jogou contra a LDU e acordou feliz no dia seguinte.

Colocou a sua camisa da sorte - que ele não usou no dia do jogo - para encontrar o seu amor, em um bar em Copacabana. Queria ser descolado - mesmo que seus amigos o culpassem pelo resultado do jogo, mesmo que ele não tivesse usado todos os poderes de que dispunha para um desfecho mais favorável naquela noite, mesmo que, afinal de contas, ele fosse um egoísta e estivesse usando a sua camisa da sorte para lograr sucesso pessoal no seu primeiro encontro com Julieta.

Sim, Otelo estava decidido - e sim, Otelo era um canalha. Não tivera assistido ao jogo, não tivera tomado cerveja com os amigos e em vez de chorar de indignação, estava em casa fazendo poemas para Julieta em plena quarta-feira, o infeliz - que além de ser culpado pelo resultado do Fluminense na Libertadores da América, também o era por ser poeta em pleno dia de final de campeonato!

Nem Nelson Rodrigues escrevia em final de campeonato! Colocava suas cunhadas, noivas, cafajestes, esposas, cafetões, maridos e malandros cariocas - todos eles sem exceção – para dormir, enquanto assistia apreensivo e confiante a um Fla-Flu.

E apesar de todos os contras, de tanta gente lhe lembrar o mau agouro que havia sido seu bem sucedido primeiro encontro em uma quinta-feira, os dois namoraram e depois casaram... E ainda vivem felizes e fazem sexo!

Afinal, quem Otelo e Julieta pensam que são? Uma nova peça de Shakespeare?

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Gabriela



Não sei se por amor ou por desprendimento, Gabriela arrumou suas coisas e decidiu sair. Não levou muito. Não tinha, na verdade, muito: um casaco contra o frio, um prendedor de cabelo de metal, quatro mudas de roupas dentro de uma mochila – única coisa que ela levava do seu namorado ou ex-namorado - Ela não sabia ao certo porque não terminara nenhum relacionamento e talvez nem lembrasse que em algum tempo o tivera iniciado.

Nos ouvidos zunia a única tecnologia que Gabriela transportava nessa viagem. Podia estar escutando rock’n roll ou Heavy Metal que combinavam muito bem com sua tatuagem colorida de dragão, impressa nas costas nuas. Mas em vez disso escutava Elis Regina cantando Atrás da Porta e também Nana Caymmi, mas algo que eu não saberia dizer.

Ao dar a última olhada na sala bem mobiliada, e já com sua vida sobre os ombros, Gabriela ainda teve ímpeto de alinhar o quadro torto da parede. Também quis girar mais uma vez a manivela da caixinha de música que ganhara de seu pai e que deixaria sobre a mesa prendendo o seu bilhete de despedida. Queria que o seu namorado ou ex-namorado a escutasse, ou antes, ou depois, de ler o que tinha escrito.

Ela não ajeitou o quadro, nem girou a pequena manivela da caixinha de música. Não sabia ao certo se isso era ser dramática. Nunca havia pensado a sério nisso e não estava disposta em fazê-lo agora. A idéia só tinha lhe passado pela cabeça. Então se lembrou, ainda, de tomar água e de ir ao banheiro (sem dar descarga) antes de ir embora. E pensou que não dar descarga seria a sua vingança contra o seu ex-namorado ou ainda namorado. Não que ela tivesse raiva dele. Queria só se vingar, porque achava que não poderia abandonar ninguém sem uma vingança.

Abriu a porta, pegou as suas chaves com o chaveiro de alguma concessionária de automóvel e fechou-a atrás de si. Colocou-a, depois, sob o tapete da porta principal.
No bilhete sobre a mesa e preso pela caixinha de música que seu namorado, enfim, não tocou antes de lê-lo, ou mesmo depois, estava escrito:

“Querido:
Fui comprar leite. Volto já.
Beijo.”

E o seu namorado (ou ex-namorado) só conseguia lembrar que ela era alérgica a lactose.

Gabriela gostava de clichês.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Sobre raposas e pingüins



Anita tem sobre a sua geladeira um pingüim. Nada que não fosse tão corriqueiro, nada que fosse tão peculiar que precisasse ser lembrado por alguém que a tivesse, algum dia, visitado ou, ainda, dormido em sua cama e preparado um café-da-manhã romântico servido no quarto, ao amanhecer. Sua cozinha tinha de tudo o natural e igual a quase todas as cozinhas. Não fosse - passou pela cabeça do homem que dormira a última noite na casa de Anita e que havia preparado o café-da-manhã romântico desta semana – ter observado que se tratava de um pingüim imperial.


Ricardo tinha uma raposa colorida impressa em um cartaz de 60 cm X 40 cm, colada na parede do seu quarto. Ele devia ter 18 anos e a raposa estava esplêndida em meio a um campo de trigo que balançava sob o efeito do vento morno que certamente soprava no final da primavera ou no início do verão. Gostava de olhá-la ternamente enquanto beijava qualquer mulher que ele trouxesse ao quarto – e nenhuma a amava, porque acreditavam que um homem que beijava de olhos abertos não podia amar.


Um dia, na festa mais improvável, no dia mais derradeiro do ano, com as roupas mais inadequadas, Ricardo e Anita se encontraram. Um sentia frio a outra sentia calor. Pareciam estar ambos em outro mundo – pareciam mesmo nunca dever ter se encontrado. Mas mesmo assim conversaram, enquanto, aos poucos, o mundo ia girando vagarosamente para alcançar algum canal especial, como uma antiga televisão de seletores, que faz barulho para sintonizar algo na tela.


Anita, com o seu pingüim imperial, estava no inverno e, Ricardo, sempre com sua raposa, estava no verão. Mas o mundo girava devagar para sintonizá-los em uma primavera ou em um outono - e os colocou um dia, em uma estação em que puderam, pela primeira vez, sentir a mesma coisa: estavam ineditamente confortáveis e amáveis e sorridentes. Gostaram de tantas coisas em comum, riram de tantas situações similares, abraçaram-se várias vezes e beijaram-se inúmeras e tantas outras que Ricardo a convidou para conhecer sua casa.


Lá, pela primeira vez, Ricardo não ficou de frente para a raposa antes de beijar uma mulher – e Anita agora tomada pelos beijos, com os olhos de Ricardo fechados, se apaixonava enquanto no cartaz a raposa corria pelo campo de trigo cor de ouro e rodopiavam os ventos diversamente sobre a superfície rica daquelas paragens. O sol brilhava ameno às quatro horas da tarde, talvez a hora mais agradável em qualquer lugar do mundo e também no cartaz. E estava tão feliz que quando estacou, a raposa contou a Anita, ao pé do ouvido, segredos que só havia contado a um pequeno menino de cabelos loiros. E Anita amou Ricardo.


Depois, ainda naquela estação indefinida do ano, Anita convidou Ricardo para ir a sua casa. Sentiam-se maravilhosos e olhavam-se e se admiravam sob a luz tênue do sol. Mas Anita ainda queria dizer algo antes da vacilação do clima, antes que pudesse o mundo girar e alcançar outros tempos de frio e de calor que os pudesse separar. Então ela o amou a noite inteira – mas não como os animais: beijando-o com devoção e sem malícia, acariciou a sua face com as pontas dos dedos e depois com as costas das mãos, como quem não quisesse afastar o toque nem pelo curto espaço do recomeço de um carinho. E o tomou nos braços – e quando ele quis falar, o calou, olhando nos seus olhos mais profundamente e mais, enquanto naquele kitnet minúsculo também os observava o pingüim imperial de cima da geladeira. Anita nunca tivera amado fora do quarto.


Ricardo sequer havia amado.


E olhando no espelho indefinido dos olhos dela, ele pode saber o que esperava o pingüim sob o açoite do vento gelado. Ele não se movia um milímetro enquanto sopravam as tempestades de gelo, não vacilava diante do nada, não olhava para o caminho que havia percorrido para chegar até ali para se pôr à prova da ausência. E então, naquele quadro branco, um ponto que se aproximava o fez voltar-se contra o vento - e ao longe não era mais que algo indivisível da sombra ou do preto. Mas então ele sabia. E nesse dia Ricardo amou.