sábado, 20 de fevereiro de 2010

A fera e o domador


Sei que toda ferocidade defende uma doçura. É isso que quero tocar em ti. E por isso ignoro a distância, o frio, o silêncio - e observo da fera, apenas o rugido... Tenho o encantamento dos domadores nas mãos - e tu me mostras os dentes enquanto estalo no chão o chicote e, nos ares, solto a gargalhada que aguardava, silenciosa, o teu avançar de animal.

Visto, no picadeiro, um fraque colorido em amarelo e vermelho. Não tenho as feições tradicionais dos domadores de feras dos circos. Não sou sisudo, nem bruto, nem grosseiro. Não sou forte, nem anguloso, nem rápido o suficiente para escapar de um ataque. Domo com o olhar e com a paciência dos que não temem ser feridos de morte - e penetro-te a visão perscrutando tuas resistências e medos.

A platéia, inquieta, ajeita-se nos bancos de madeira procurando alguma abertura esquecida na jaula em que nos encontramos, fera e domador. Assistem ao nosso espetáculo esperando encontrar em mim um domínio sobre a fera que eu jamais poderia ter. Eu, no entanto, não me iludo. Conheço os teus movimentos, respeito a tua alma das feras aprisionadas para o espetáculo alheio... Afinal, não estamos na mesma prisão, domador e fera?

E descobrimos ao mesmo tempo, com as luzes apontadas sobre nós, que tanto eu quanto tu somos domados enquanto a música de suspense se eleva distorcida nos alto-falantes do circo: tu sobes triunfante na plataforma de madeira, e eu te dou as costas para receber os aplausos do público, confiando na tua inércia, em um movimento por nós sincronizado.

As luzes se apagam, então, e tudo se emudece, como se só pudesse existir vida na luz. Retiro do bolso as chaves dos cadeados que nos prendem dentro da jaula. Depois da encenação pública eu gostaria de te afagar o pelo, de ter-te com a cabeça de fera descansando sobre o meu colo e de suspirar - coisas que posso pensar no escuro... E tu, é certo, quereria esfregar-se em mim como fazem os gatos, deitar-se no chão e rolar em brincadeira, jogando para o alto a argola que atravessas em saltos durante a apresentação. Me lamberias até... Quem sabe?

Mas temos medo um do outro - e eu saio calado, abrindo os cadeados e os trancando atrás de mim. Tu caminhas exaltada, cada centímetro do teu mundo, afastando-se das fronteiras das grades e de qualquer coisa que possa se aproximar do mundo fora desses limites. Tu arfas como se quisesse farejar o futuro ou como se sentisse uma súbita falta de ar - te olho então, antes de ir embora.

Mas já não queres me ver.

Terminamos nossos espetáculos sempre assim:

magoados.

Nenhum comentário: