sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Amara


Amara era linda, mas tão linda, mas tão linda, que eu me abestalhava completamente ao vê-la debruçada sobre o alpendre da casa amarela da esquina da rua. Ela tinha a beleza acintosa das loiras dos bordeis de madame Toussot, como um demônio banhado em ouro e de cabelos esvoaçantes e ardendo em meio ao enxofre e o desejo.

No entanto, debruçada no alpendre, parecia uma madona recatada, mãe de quatro filhos e ainda assim virgem, como só na bíblia poderia ser possível. E mesmo assim eu a desejava, desejava mesmo antes dos filhos, mesmo antes de o marido a ter abandonado, mesmo nos meus delírios mais febris e insanos – em que minha mãe acudia dizendo que eu parasse de blasfemar.

Amara não tinha marido, nem muito menos quatro filhos. Quem sabe até fosse virgem ainda. E apesar de tudo isso, de seu cabelo ter parado de voar e de o cheiro de enxofre ter se dissipado no ar, eu ainda a queria.

Filha da família mais interessante do bairro, como era natural, casou-se com o filho do médico mais influente do beco do bairro, Raimundo – que não por despeito meu, era o cidadão mais tosco e grosseiro que se poderia arranjar em duzentos metros quadrados: exatamente a área que continha metade da casa de Amara e metade do beco do médico influente. Eu, pobre coitado, mero despachante de cartório, escondedor de selos de reconhecimento de firma retroativa e de autenticação de documentos falsificados, jamais chegaria mais próximo de Amara do que o olhar que lhe largava em todas as tardes, às 17 horas, quando voltava da labuta diária para casa. Imaginava sempre o dia em que me apresentaria diante do tabelião, acompanhado dela, para sacramentar, no civil, a nossa união – ocasião em que eu selaria sua assinatura com um selo decentemente atual e original, digno de nosso amor e autenticidade.

Apesar disso, num dia de quarta-feira, distante o suficiente do final de semana, para o meu desgosto, terminei por selar e vistar o contrato nupcial de Amara e Raimundo – que nem combinavam na vida, nem no papel. Usei, apesar do pensamento mau em contrário, um selo original, porque já que ela escolhia viver com um homem daqueles, promissor, filho do médico e ele próprio medicozinho da casa amarela da esquina, o que eu podia fazer?

Voltei para casa cabisbaixo. Durante anos pensei como poderia ter sido a nossa vida juntos: eu tabelião e ela uma madona virgem mãe de quatro filhos me esperando no alpendre da casa amarela que seus pais deixariam de herança para nós dois depois de morrerem logo após nosso casamento - vida linda, linda, mas linda mesmo!

Mas isso estava tão no passado, que não era mais nada... Somente eu, a primeira pessoa do singular, com o amor no pretérito-mais-que-perfeito.

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