terça-feira, 25 de março de 2008

Capítulo X - Os Câes do Inferno




X

Minha esposa, dirigindo o carro, andava vagarosamente pelas estradas do Alto Condado. Eu olhava-a pelo retrovisor lembrando do dia em que a conhecera. Minha filha alisava meus cabelos e olhava dentro dos meus olhos tentando adivinhar o que eu pensava - e uma hora ou outra descobriria, porque ela tinha olhos de gato na noite, e eu a deixava olhar-me, sem resistência, caído dentro dos seus olhos verde – amarelados, incapaz de levantar-me senão por calculado descaso dela, um piscar de olhos.
O crepúsculo descobria a noite quando chegamos em casa. Antes de entrar, parei em frente à porta e pude ver Heloísa contra o Sol que desaparecia - ela era linda desse jeito e eu lembrava que era assim que costumava amá-la quando chegava do trabalho: casualmente ao pôr do Sol. Nessas horas, a luz a enchia e ela era, própria e unicamente, algo sobrenatural. Tomava, no dia, as feições áureas da luz e desafiava, como a água ou vento, a própria essência da claridade. Estar na luz era estar vivo. Agora o Sol me cegava. Não via na claridade desbotada, a luz que luzira em Heloísa outrora. E, de repente, tudo o que o branco antes elevava e fazia novo, agora escondia na negridão, na ofuscação do olho contra a luz, fechando-se, apagando um luzidio queimor de Heloísa, que era o próprio Sol, e ardia como ele, contagiando-me com suor, gosto e gozo.
Mas em mim, agora, não mais ardia o tal fogo, não a mesma chama luzidia de outrora, mas um consolo de luz fria e agradável, que brilhava todas as noites, quando a queria ver. Então invariavelmente lembrava-me de quando a tive nos meus braços pela primeira vez e, ela lançada como uma explosão de dourado, jogava-se por sobre mim com tanta intensidade que chegava a unir-me a ela acreditando não mais largar. - sim! Não lhe soltaria mais o corpo, nem a alma, que peguei pela primeira vez e experimentei como minha, nem seu gosto e seu balançado e seus olhos, tão vivos que me faziam viver por obra apenas de um olhar. Nem os seus cabelos de ouro, e suas mãos de cigana e seu corpo de mármore branco esculpido. E recordava o quanto a amava por simplesmente amar! E podia até sentir que ainda resistia uma fagulha, a chama lerda de um fósforo fosforilar no meu peito sem Sol - e tudo isso não passara de um vento frio de outono que me afagava a face enquanto eu preferia viver o passado.
Longos 15 minutos se passaram. Minha esposa havia entrado e me chamava há algum tempo. Andei devagar na passarela de cimento, estaquei na porta e mirei em direção ao casarão - dois cães me olhavam e eu quase pude sentir as suas respirações, quando Áurea puxou-me pelo braço dizendo:

- apareceram aí de uma semana pra cá...
- Uhhm?
- Os cachorros, pai.
- É... eu lembro.
- Do quê?
- Deixe, Áurea. Esqueça. Vamos entrar que sua mãe já está ficando preocupada com essa demora.

E entramos juntos. E da minha cabeça não saia outro pensamento senão que aqueles cães eram os mesmos que vira pela janela, quando eu caia na sala da minha casa.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Parábola dos Ricos



Isso deverá vir como uma carta fechada ou com uma página antecedendo com os dizeres: cuidado , parábola curta e grossa.


Parábola dos ricos


Era um casebre. O ano não interessa - isso se repete todos os anos e dias que se possa imaginar. O lugar... bem o lugar pode ser em Alto Condado mesmo - porque Alto Condado é em todo canto. Existia um pobre e um rico - e você já pensa o como essa história é batida e chata. E na verdade é tudo isso mesmo, e se quer saber me faria um grande favor se pulasse essa parábola. Mas à mim cabe escrever para os que não desistiram. Então...
Estamos na favela. É uma daquelas festas onde pobre come - e existem no ano ao todo quatro: A páscoa, Quaresma, Cosme e Damião e Natal - no resto do ano pobre vive de um jeito que ninguém descobriu ainda. Mas vive, certamente, até o próximo natal onde os homens de bom coração sobem o morro e, caridosamente, enchem a pança da meninada que já nasce de bucho grande e inchado. As mães, desconfiadas, ainda conseguem um sorriso murcho e sem força, mas no fim agradecem e dizem, com os braços erguidos para o céu: graças a Deus.- amém. Mas deixemos isso para lá porque ainda não chegou o natal. É outra festa.

As crias pobres:

Um menino brinca com seu pai no campo pelado do topo do morro. Rola a bola pro guri. Ele chuta e o pai, goleiro, esforça-se para defender a tumba colocada do filho. A pelota voa bem onde a coruja dorme - gol, grita o filho - o goleiro, derrotado no seu vôo, ri fartamente dizendo que ele se tornará um ótimo e rico atacante de algum time italiano. As roupas encharcadas de suor e barro molhado, terminam compondo o quadro. O pai manda o menino pro gol, o guri se nega, o pai o chama de desgraçado e sai correndo pesadamente atrás do filho que ri de morrer - eu sou é atacante, goleiro frangueiro! Depois abraçam-se e entram no barraco juntos, como duas bolotas de barro coladas.


Os infantes ricos:

O Henrique Lisboa, filho primogênito do casamento de Laurinha Meneses e Rodolfo Lisboa, dá o seu mirim ar da graça no clube de tênis Sabournai - diz a coluna social dum jornal qualquer. Nas calorosas tardes de Quinta -feira o garoto marca presença com o seu técnico, o especialíssimo Ricardo Ruiz para pôr em ordem seu porte todo atlético - continua a ler o pai sentado numa poltrona confortável de qualquer grande mansão de Alto Condado. Eles nem se viram hoje, mas o pai está todo orgulhoso e chama a mãe para mostrar a grande matéria jornalística. Ela diz que não tem tempo, porque está organizando um five o’clock beneficente na casa de Lucinha Brandão. O pai joga o jornal do lado, ajeita a gravata, chama o motorista e sai pra trabalhar.

à noite, um pobre motorista chegando no seu barraco após um dia cansativo de trabalho comenta com sua tísica mulher:
As crias pobres tem tudo e não possuem nada. Os infantes ricos possuem tudo mas não tem nada.
ao que a mulher responde acabrunhada:
Tá doido é homem! tu nunca fosse de dizer essas coisa ilustrada! Foi o Doutor que te disse?
ao que ele respondeu:

não. eu li no jornal. sabe... até que naquelas colunas sociais tem alguma coisa que presta.