sexta-feira, 25 de julho de 2008

Os Cães do Inferno - Capítulo XIV




XIV
Assim, depois de um dia de trabalho como há muito não sentia sobre os ombros, saí pela porta de serviço. Desci um lance de escadas mal iluminadas, depois outro, e mais outro. Estaquei. Apoiado nas paredes tateava experimentando a sensação de não ver com os olhos abertos. Então desci tão rapidamente e tão cego e confiante que não admitiria cair ou tropeçar ou sequer fazer algum barulho, porque agora descobria que o silêncio era amante da escuridão e que, se você fosse hábil o bastante, poderia tocá-los sem que eles percebessem. e eu descia com as mãos leves e afagantes, que roçavam nas paredes como a boca de uma criança no seio da mãe. Eu corria com a respiração lerda e sufocante e quase num vôo pulava incólume e silencioso num corredor, porque não mataria o silêncio com nenhum barulho.
Parei para descansar num corredor que cheirava à fumo e à morte. Era impressionante o magnetismo: porque sempre a morte, sempre a escuridão, a podridão, me atraíam e me pareciam sempre belas e donas de uma verdade incomum e cotidiana? Por que, ao contrário da maioria, não me fechava contra o medo, o terror, e a solidão? Por que não adorar a luz, o brilho da água banhando-se de sol, as cortinas tremulantes de uma sala ampla e arejada? Por que não amar com o amor conhecido e abandonar a miséria das paixões avassaladoras? Mas eu queria escombros, queria ruínas e pó. Queria retornar à época imemorável do nada, quando uma voz rasgou o silêncio e matou a escuridão. Descobria, invariavelmente, que vivia um outro tipo de vida, onde viver ao avesso era viver ineditamente. Para mim, agora, como nunca antes, experimentar o que ninguém ousara experimentar, e mesmo se fartar desse exótico banquete, representava a vida que desistira de viver até hoje. Descer aquelas escadas era navegar por dentro de mim.
Incitei-me a prosseguir. Penetrei por mais um lance de escadas e por mais um outro. Então percebi ruídos de vozes distantes e apagadas. Vozes fugitivas que em tudo arrastavam cordas e correntes. Era uma voz que chamava pela cumplicidade e que queria amarrar e acorrentar a outra: lançando-se feroz, bravia, apesar da estaticidade do ar e da tremulação da outra voz vacilante. Eu continuei descendo, e descendo cada vez mais. As vozes foram aumentando, tornando-se mais vivas e movediças e sussurrantes. Falavam mais perto de mim, me jogavam na parede, me ameaçavam prender e a escuridão permanecia - mais negra e parada. Alcancei mais um corredor, que em tudo se parecia com o outro onde eu havia parado. Mas tinha um cheiro de fumaça mais forte, latente - e as vozes, que antes escutava distantes, agora eram próximas. As palavras pronunciadas naquele chiado típico de segredo, beijavam-se no silêncio aterrador daquele encontro. Um homem e uma mulher, ou dois cigarros, conversavam no escuro. A luz vermelha luzia forte e depois fraca na ponta do fumo. Em seguida um suspiro e depois as palavras se beijavam no sussurro abafado da revelação. Então o homem sorvia sua vida em mais um trago - a luz luzia forte e depois fraca: mais um suspiro vermelho.
- O que? Grávida?
- É.
- Eu não acredito!
- O que é que você acha? Que filhos vêm com a cegonha?
Uma tragada, uma luz vermelha e um suspiro.
- Você quer me ferrar?
- Quem vai carregar esse filho sou eu! Quem está ferrada aqui?
- Eu sou casado!
Agora ela acendia outro cigarro. O dedo nervoso batia o isqueiro com voracidade, e uma chama azul acendeu o seu cigarro. Uma tragada. a luz vermelha cortando a negridão e depois um suspiro - fumaça.
- E eu sou solteira, querido! Não tenho pai, mãe, irmãos...
- Eu não posso assumir essa criança. Você vai tirar...
Um soluço. Talvez uma lágrima muda caindo no chão.
- Eu nunca tive filhos... - uma tragada vermelha. o cigarro suspirava.
- Querida, eu te amo, você sabe... - carniça. Um brilho vermelho. Dois dedos agonizantes esmagavam o cigarro na parede.
Um pigarreado sonoro, o barulho de uma mão afagando um rosto estupefato pela notícia - ele alisava a própria face. Depois, o barulho de um corpo largado no chão: ela quedava-se vencida.
- E agora? - fumaça se elevava lerda dos dedos da mulher.
- Não chore, amor. Eu vou me separar... aí poderemos ter quantos filhos quisermos...
Um soluço, depois outro. As lágrimas agora falavam.
- Não chore, não chore...
Uma súplica, e depois um beijo para emudecer o grito mudo do silêncio interrompido pelos soluços dementes da mulher. E ela continuava. Soluço após soluço, lágrima após lágrima.
- Pare de chorar! Por favor, pare de chorar! - falara isso com o império dos comprometidos, com o falso amor da carne medrosa de um corpo autofágico.

E a mudez se fez total. Foi possível ouvir o som do erguer da mulher. Roupa batida no autoflagelo dos podres de pó, com as mãos em riste contra as pernas, costas, nádegas... colo. Tragou mais uma vez o cigarro terminal entre seus dedos, e lançou um último olhar para a brasa vermelha e brilhante. Jogou o cigarro no chão, olhou-o com olhos de mãe e pisou-o - ali jazia o seu filho.
Eles saíram calados percorrendo a extensão do corredor escuro. No fim entraram por uma porta e se esconderam na luz. a claridade havia sido tão intensa que não conseguira ver quem eram os dois.
Permaneci parado por mais cinco minutos. Talvez velei um morto fedorento, talvez apenas me tivera deparado com um pedaço de carne podre no chão - não sei. a verdade é que fedia.
O cheiro de fumo voltou a incomodar-me na relação inversa que uma carniça atrairia um urubu. Continuei a descer as escadas quase morto, até chegar ao estacionamento.
Dei mais alguns passos e me vi perseguido pelo subgerente que, desesperado, queria desejar-me boa noite antes que eu entrasse no carro.
E eu queria apenas respirar limpo outra vez.