quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Os Cães do Inferno - Capítulo XVI


Dona Milú. A velha dona Milú. O que escondia? Por que pagava tão caro por seus segredos? Teria filhos, irmãs, parentes? Ninguém. Por que a bíblia, a voz tremula e chorosa, as roupas castas, o sorriso forçado, as mãos negativas dentro do vestido de estampa apagada?
A carne puída, o rosto descarnado, os olhos sulcados, os cabelos desgrenhados - brancos como uma luz ofuscante e perdida - pernalta e seca, com unhas duras feito cascos, amareladas - tingidas pelo tempo e fungo. A sua boca era algo como impotente na verdade: apenas as mentiras tinham voz, a ilusão - não mentira para mim, ou para qualquer um outro. Antes de tudo mentira e ilusão para ela mesma. Seus dentes longelíneos, quase sem gengivas que os quisessem tocar. Na sua pele morava uma sensação de secura e miséria - via agora um monstro. Talvez não a mesma Dona Milú que estivera no meu quarto quando eu estava doente, não. Mas com que certeza eu dizia isso? Como eu poderia precisar sobre os seus olhos ou sobre a sua pele?
Dona Milú era um monstro, eu agora pensava - pela forma e pelo pensamento. Pela forma porque seu tempo se fora e tudo nela permanecia variadamente: a tristeza, a miséria, as árvores sem folhas do outono. E pelo pensamento, porque ninguém poderia remontar ao exato momento em que ela abandonou a sinceridade com ela própria.
Assim via Dona Milú. E era como se ela soubesse que a via assim - com tanta crueldade ou até com simples realidade. E era como se ela apreciasse essa cumplicidade, esse terror.
Aquelas caminhadas matinais que sempre observara da minha janela, mesmo nos dias já frios dessa estação tão tenebrosa e aconchegante, não me davam a realidade dela, não me mostravam o que mostrava aos outros, ao pastor da igreja, ao jornaleiro que cruzava todos os dias com ela e, às vezes, parava para olhar durante dois minutos a passagem de Dona Milú pela calçada cinzenta daquela rua. Impelia-me justamente esse olhar do jornaleiro, esses infindáveis dois minutos que ele – e, sobretudo eu – passava observando os passos que, nesses momentos se desenrolavam mais lentos ainda do que de costume, como se lêssemos dona Milú nesse intervalo minúsculo de tempo, nessa vacilação entre o passar e o espaço, entre a permanência e a mudança. Empertigava-me também esse olhar do jornaleiro: por que olhava dona Milú com olhos tão parecidos com os meus, quase com o mesmo interesse que me lançava a mirar aquela figura a que ninguém, além dele e eu, passaria mais de dois segundos observando? Qual o segredo de dona Milú. Será que esse jornaleiro sentiria falta dela se, em algum dia dona Milú desaparecesse ou, por algum motivo, deixasse de passar por aquela rua, mudasse de religião e não fosse mais à igreja pela manhã? Mas afinal de contas: o que me levava a fazer essas perguntas, o que me prendia tão visceralmente a essa preocupação descabida? Certamente olhava dona Milú porque talvez não tivera visto antes uma mulher tão estranha, tão mentirosamente devotada – eu sabia, tinha quase certeza, uma certeza daquelas que se tem quando se é eminente uma descoberta científica ou a traição de sua mulher, a gravidez proibida da sua amante.
Ela mentia! Mentia para todos, mentia para mim e talvez tivesse mentido para seu Germino também. Talvez o jornaleiro fosse um filho perdido ou, quem sabe, ela tivera negado ao bom seu Germino um filho, mentindo-lhe que era estéril enquanto, com outros homens entornara toda a sua juventude, todo seu fulgor, seus braços, seus seios, sua cintura em silhueta fina, suas pernas delineadas... Agora o que era? Tudo vai embora. Tudo vai. Tudo. A juventude fora, a beleza fora, seu Germino fora.
Essas cogitações estranhas, talvez tão estranhas e descabidas, me vinham todas as vezes em que via o jornaleiro a observar. E vinham com tanta realidade – ela premendo unhas contras costas, suspiros contra rostos, lábios contra lábios: carne contra carne. O corpo derramado em êxtase juvenil, no calor dos lençóis alvos e sedosos de outro homem que não o seu, naqueles anos passados do início do seu casamento. Aturdia-me, sobretudo a imagem do corpo nu dormindo calmo e liberto na cama, os olhos cerrados nas pálpebras, a cabeça do amante displicente e amorosamente largada sobre o tenro ventre – tão lindo, tão atraente, tão cheio de volúpia incontida! Um beijo inguinal e depois um suspiro e um despertar alegre. Por quanto tempo dona Milú esperara por aquele dia? Por quantas tardes pensara naquele homem e nos seus lábios e nas suas mãos e na maneira como ele lhe apertava carinhosamente na cama, contra seu peito, desejando-lhe mais do que a qualquer outra, mais do que até a sua própria mulher. Por quanto tempo passara esperando essa explosão, a ansiedade de um desconhecido, as suas mãos puxando os cabelos e a boca beijando o pescoço?
E seu Germino também passara. Tão trabalhador, tão calado, bem tratado, comida na mesa, roupa limpa, casa em ordem. Tão solícito, tão amável e delicado, tão quieto. Precisando tanto de um filho, talvez. Algo que lhe desse dinâmica, aborrecimentos, um pouco de preocupação que não as do trabalho. Mas em casa era tudo ótimo. Não lhe faltava nada. Talvez uma mulher. Talvez. O que lhe doía era não ter um filho. Isso lhe tirava o viver: uma mulher estéril! Tão linda, tão cuidadosa. Mas estéril!? Não lhe podia fazer mal. Ia vivendo ela, e ele do jeito que podia, se conformando com a falta de filho, com essa mulher que era quase uma santa de tão boa.
À dona Milú doía ter um homem amargurado, sempre querendo um filho. Já não tinha tudo? Então vivia e vivia e vivia. Por quanto tempo se dera ao seu marido com ímpeto, com força, com frêmito? Por quantas vezes ele a amara faminto, com a selvageria de uma matilha, com o desejo dos condenados à morte, na sua última noite? Depois que dona Milú disse que não podia ter filhos, virou um amor sem pretensão, sem vontade, sem objetivo. Sem filho... Dona Milú de tudo lhe dera, só se negava a dar um filho. Isso não! Tinha uma vida feliz, uma boa casa, um homem que a amava com desejo, porque um filho? Para quê um filho?
Quando seu Germino se negou a amá-la como em outrora fizera, ela se negou a deixar de ter uma vida feliz. Continuou com a casa, com um homem tão quieto e bom com o qual havia se casado, continuou mantendo-o com carinho, devoção e prontidão. Fez-lhe de tudo como antes fizera, do mesmo jeito. Nada mudara em relação ao seu trato com ele – ela sempre a mesma, só que sem filhos. Até que um dia o cano da cozinha entupiu, transbordando água por todo o balcão... teve que chamar o encanador. Ele lá deitado embaixo do balcão, metade dentro da escuridão, metade solta na luz da cozinha, no chão daquela peça em que passava quase toda a manhã.
Ele tão forte, com uma chave de cano na mão, um vozeirão rouco quando falava que teria de trocar o cano. Dona Milú com vinte e quatro anos, delgada, vestido apertado na cintura, decote no busto de alabastro intumescido pelo caimento da roupa. Ela de pé ao lado e ele deitado no chão, quando tirou a cabeça da escuridão pra se levantar, ninguém sabe se de caso pensado ou se por descuido, dona Milú deixou-se ver e o encanador ficou a olhar satisfeito. O que se sucedeu, em vez de um mal estar de ambas as partes, foi um enrubescer sutil na tez sensível de dona Milú, que tanto podia ser de excitação quanto de vergonha, e um sorriso no canto da boca do encanador que via naquilo um vacilar, uma incerteza na decisão da mulher.
Depois ela saiu para pegar o dinheiro do pagamento do homem – e pediu que ele a acompanhasse. Ela entrou no quarto, abriu uma gavetinha na cômoda e perguntou quanto era o serviço. O homem disse o preço e ela chegou-se perto dele para dar a quantia. Ele estava na porta, não ousara entrar no quarto. Ela queria passar, sair dali, ou talvez aquilo fosse apenas um pretexto. Apertou-se entre o encanador e a porta, roçando o corpo no corpo dele, pressionando seus seios contra o peito dele e levantando o pescoço, depois de respirar o cheiro do encanador e deixar que ele fizesse o mesmo com ela, lançando um suspiro pela boca aberta e trêmula. Tinha medo é verdade. Mas o que importava?
Então mãos fortes apertaram seus braços e o homem só foi capaz de dizer na sua voz malandra em tom mendigante: moça... a senhora não devia fazer isso que tá fazendo comigo... E calou-se. Não falou mais nada, porque ela o beijara, e ele também a beijara. E ele com as mãos nos braços dela enlaçaram-na num abraço ousado, e depois percorreram as fitas do vestido até desenlaçar toda a roupa e deixa-la cair no chão. Ela medrosa, talvez até arrependida de não ter feito aquilo antes, de ter continuado a viver, hesitava em tirar-lhe a camisa e a calça. Mas depois que se percebera nua, buscou com mãos geladas a camisa e a calça dele e desabotoou ambas, enquanto ele, passivo, observava aquela mulher tão linda que o despia vagarosamente.
Ele beijou-lhe o ventre, as pernas, os seios - e ela tremia. Tremia o êxtase que não sentia há muito. E arfava, com as mãos terrificadas, até que ele afagou-lhe a face e as costas e deitou-lhe na cama – mesma cama onde dormia ela e o marido, mesma cama onde ela tivera dito não poder ter filhos, mesma cama onde seu marido a tivera amado com desejo e que agora não amava mais. E ela quedou-se na cama, olhava o teto, o rosto do homem que a tomava naquele instante - adorava-o, adorava-o e só fez uma exigência: que ele a deixasse chamar-lhe de Germino.
O homem já nem se importava com isso. Aliás, sentia até mais prazer. Não dera resposta alguma. Não precisava, não queria. Afinal de contas se ele não aceitasse ela cederia? Que importância teria aquilo? Beijo-lhe a barriga e desceu ainda mais. Não responderia – e ela deu um suspiro segurando a cabeça dele e implorando que a beijasse mais e com mais força. E então o pressionou contra ela, tão vermelha e quente, tão úmida e pedinte – queria-o todo, queria-o, enfim, nela própria como um pedaço seu, quente, líquido, movediço, como seu marido fizera, como este novo homem deveria fazer.
Ela então o beijou – no peito, na barriga e no sexo e tanto até ele estremecer e pedir-lhe em olhares tão falantes que o tomasse com os braços, com as mãos, com os lábios... E ela com as pernas o enlaçou e lhe cravou nas costas as unhas, enquanto com um uivo deslizava por ele, livre, solta, delirante.
Ele tão cadenciado, rítmico e flamejante recuava e se lançava e o fazia de novo e mais uma vez, de rosto nos seios, de mãos que suspendiam e largavam e que premiam e acariciavam e erguiam e soltavam mais uma vez, contra a parede, no ar, ela presa a ele e ele preso a ela, em meio aos ares e os sopros e os sussurros, os urros, o êxtase, as línguas transbordando em beijo, os desejos entornando em quadris, ombros, pernas – pernas prisão e movimento. E aquele eclipse - sol fechando-se em lua - suor e gosto, sal e olhos e rufar de peitos e gritos agudos e baixos, no segredar do inaudito, no falar das mãos, na linguagem das peles úmidas se tocando, do calor próximo, dos vapores do clímax, daquela mulher devorando aquele homem, forçando seu sexo contra o sexo dele – daquele homem invadindo aquela mulher, investindo-lhe virilidade, carinho e fúria. E o nome repetia-se forte: Germino, Germino, Germino! – a cada estremecimento, a cada toque da língua no mamilo enrijecido, a cada arquejar de suas costas e jogo do quadril contra aquele corpo, sobre aquele homem em galope incendiado e cintilante.
Então ela sentiu um calor no ventre, o verter de luz, o suspiro libertador do seu macho sob seu corpo suado, no retesar de músculos, na ondulação do seu órgão, no eriçar dos pêlos, no aperto sufocante das suas mãos envolta do seu quadril frenético, até que ela explodiu, viva, pulsante, azul.
E rolou com o seu amante sobre a cama, a fim de sair de cima dele, a fim de passar-lhe a mão no rosto, de o olhar mais brandamente uma vez e de, quem sabe, dormir com a cabeça sobre seu peito, escutando ainda seu coração acelerado nas batidas que ela provocara, na rapidez tépida e vermelha que só ela poderia ter gerado naquele dia, naquela cama. E até ficou por cinco minutos assim, perdendo-se naquela felicidade descomprometida, naquele esquecimento tão renovador.
Mas era casada. Vestiu-se se despedindo e jurando mentalmente que jamais um cano se romperia novamente em sua casa, que nem se quer uma mangueira se furaria no seu jardim. O homem logo compreendera e não fez caso. Levantou-se. Vermelha – não se sabe se de vergonha ou se do cansaço – mas, sobretudo digna como sempre, vestiu o seu homem e o levou a porta. Ele não dissera nada – queria apenas comer e depois dormir: pena que não seria naquela cama, pensava. A única coisa que fez foi pôr o pagamento do serviço de encanação no bolso da calça e sair sem olhar para trás, em passo lento e preguiçoso, como quem abandona uma boa oportunidade de descanso após o almoço.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Poema atrasado



Correndo, correndo, atrasados que estamos
Dos compromissos que não temos,
Com as amantes que não amamos!

Andando, andando, pasmos que estamos
Com o esquecimento que temos,
Dos encontros que marcamos

Com o tempo, com a sombra, com o suco de pitanga
Com o jantar, a Madonna, Ave Maria no Ipiranga

Para gritar a independência
Desmantelar a inconfidência

E contar uns dois pecados,
Que é chegarmos atrasados
À nossa própria existência!

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Os Cães do Inferno - Capítulo XV


XV

Tivera saído pela manhã com o intuito de plantar. O fato era que minhas rosas, antes vistosas e vermelhas, agora se mostravam fracas e quase movediças. As suas pétalas, que antes bailavam no vento, de um vermelho vivo e contagiante, agora não passavam de uma mancha disforme pendida de um talo verde como uma mulher enforcada - sim - como uma mulher que saindo para um jantar com o seu vestido vermelho, encontrasse a única verdade que a pudesse matar pelo simples fato do seu conhecimento.
Assim descobrira a verdade da minha rosa. Cavei suas raízes até deixá-las a mostra. Vi, por sob a rede de bocas famintas, ossos limpos, desnudos de carne, ossos de animais, de gatos, ou de cães até. Vi que não se nutria de adubo, de esterco, ou da própria terra que a mantinha erguida e onde o seu predadorismo se escondera por tanto tempo. Se alimentava de carne - e agora eu lembrava o quanto odiava minhas rosas e o quanto tivera pago para amá-las. Quantos domingos tivera perdido, quanta vida hesitara em viver em meus dias solitários de poda.
Descobria, agora, invariavelmente, a verdade da minha rosa e podia enfim, amá-la plenamente e revolver sua terra, cheirar as suas flores com outro instinto que não o de antes, e corta-lhe os galhos com um prazer penal que não me percorria aos domingos.
Assim, empunhando a pá na mão resolvi que a roseira deveria continuar. Joguei novamente terra nas suas raízes, podei os velhos galhos e fiz ortodoxamente o que qualquer jardineiro faria para que um planta se revitalizasse.
Depois retirei uma muda e percorri a distância que dividia a minha casa do casarão branco. Um frio me afagou a espinha ao mesmo tempo em que a idéia de alimentar a nova roseira do casarão branco com o que tivera visto a alimentar durante todo este período, crescia. E nesse mesmo momento quase senti felicidade por ter-me ferido num espinho e ver meu próprio sangue escorrer até as raízes que o acolheram e o sorveram.
Ao entrar no casarão, por aqueles mesmos portões férreos - portões pesados e enferrujados que pereciam longamente nas estações do ano - percebi imediatamente que a resistência esperada para o esforço de abrí-los foi totalmente vencida por meu desejo de entrar. Minhas mãos sujas empurraram com força incomum o portão que se viu rompido por meu corpo e teve, as antes intransponíveis trepadeiras que se entrelaçavam a ele, dilaceradas, com suas folhas caindo por sobre meu corpo como num choro, e seus ramos me afagando a face e se torcendo nos meus braços e peito como num frenesi de dedos e mãos estranhas. O que se seguiu foi um ranger de dobradiças velhas e desusadas. Um grito agudo e longo que durou o curto espaço de tempo em que estive deslocando o portão para poder passar. Depois pude perceber o pó enferrujado que caía das barras da grade - um pó vermelho e miúdo que se esvaia no chão deixando uma mancha amarronzada e seca. Então eu passei - e o fiz lenta e lamuriosamente porque desejava sentir, mais uma vez, a mesma sensação estranha que me tocou quando forcei-me contra o portão - e depois fechei a curta passagem por onde entrara. O rangido foi forte e se uniu ao barulho do bater do ferro contra o ferro, do metal contra o metal, que ecoou longamente até que morreu surdo sem que ninguém além de mim percebesse.
Então eu andei com um terror pressionando minha cabeça. Tinha um pavor incomum que me acompanhava, lado à lado, como minha sombra que se mostrava mais forte neste dia de Sol. Tivera visto dias antes, dois cães entrarem e desaparecerem dentro do casarão. Onde estariam agora? E a Camponesa? Por que não me recebia? Tudo me parecia perigoso. Talvez, dentro em pouco, me encontrasse nas mandíbulas dos cães ou, já sem perceber, estava morto e andava como uma alma displicente pelo jardim do casarão. Mas não. Não estava morto. Caminhava devagar a procura de um lugar apropriado para minha cria - minha roseira. E tinha a plena sensação de que finalmente o encontraria nas terras frescas e femininas do casarão.
Por fim, plantei a muda no jardim do casarão com a certeza de que vingaria. Com a certeza de que me daria flores mais vistosas do que tivera dado a roseira do meu jardim. E o sabia porque tivera sido plantada num misto de sangue, alegria e tremor - e para mim, como para a roseira, isso se estava tornando essencial. Tornava-se o próprio júbilo da noite e das flores. Tornava-se, como numa explosão, o fogo, o estrondo e o silêncio - a calmaria.
Abandonei o jardim do casarão com a impressão clara de que fora observado por minha filha, ou até pela camponesa que nunca se mostrava pela manhã. A verdade é que desejei furtivamente ter sido observado neste dia, como se o meu prazer pelo perigo estivesse encarnado nos olhos da minha filha, da camponesa ou dos dois cães possivelmente escondidos dentro do casarão. Mas não - não ousaria procurá-los - não faria do meu prazer uma certeza. Não naquele dia.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Os Cães do Inferno


Maldição eu gritava ao perceber o que ele desejava fazer e acelerei o passo mais e mais rápido para que não tivesse êxito. Sufocava-me ainda com o cheiro impregnado do morto. Sentia-o exalar por toda a minha roupa, sabendo terrivelmente ativo o perfume que certamente o mascararia à qualquer um que chegasse perto de mim. Aquele cheiro, na verdade, sufocava apenas uma pessoa e só eu podia sentí-lo. Apesar disso, prevenia-me da presença de Luís.
Mas, impressionado, ao virar furtivamente a cabeça para trás, via-o cada vez mais próximo, como num pesadelo, os passos perseverantes do subgerente, maldito na sua obstinação de me parar, até que, por fim, alcançou-me e estacou ao meu lado começando a falar.
- Boa noite, doutor!
- Boa noite! Mas não me chame de doutor, porque não tenho doutorado para ser doutor!
- É o costume...
- Pois é. O costume...
- Até mais.
- Até amanhã

Mas por quê? Por que comigo que odiava tão profundamente esses esforços de cão vira-lata para conseguir comida de um estranho? Encenações miseráveis! Perdas de tempo. Eu jamais - sinceramente - desejaria uma boa noite para o senhor Luís. E, no entanto, todos os dias era obrigado a oferecer-lhe um “ boa noite “ seguido de um sorriso que, me custava, invariavelmente, o bom humor conseguido com a dureza sincera de dona Carmen ou até do seu João.
Eu gritava: maldição! E isso ecoava dentro do meu peito como num quarto vazio que tivera sua mobília retirada pela última ordem de uma governanta organizando uma mudança. Olhei em torno de mim, já sentado no banco do carro - pude ver os discos compactos. À distância, minha angústia voltava pela mesma porta por onde fizera questão de me perseguir para dar boa noite. Talvez amanhã voltasse. Certamente voltaria! E eu me perguntava: durante quantos anos havia sido assim? - já escutando a introdução do Bolero de Ravel ... e nem sequer tinha energia para buscar a resposta (mais por vergonha de constatar que por longo tempo, do que propriamente por medo de que tivesse sido por longo tempo).
E o carro acelerava pelas pistas de Alto Condado. Galgara de súbito o estacionamento em tamanha velocidade que não percebera que, em vez de vias livres, deveria estar parado num engarrafamento ou envolvido numa batida com vítimas fatais - mas não - eu corria, e a pista era livre e tinha um aroma próprio, e era o mar! E Ravel tocava e aumentava! Então eu fechei os olhos e acelerei. Acelerei! E brinquei com o volante de olhos quase fechados! E a música corria e aumentava! Mar - eu gritava e sentia o gosto salgado na minha boca - corria e buzinava. Sorria e gritava: é o Mar! Lambia os lábios e sentia o sal na boca! E o fazia de novo, passando os dedos nos meus lábios e lambendo-os depois. E Ravel continuava. Era o mar! Quem diria o contrário? Quem?
E eu acelerava mais e mais. E sorria como não fazia há anos e mesmo sentia a água salgada bater na minha boca de novo, via o barco lutar contra ondas que se avolumavam contra a proa corajosa da minha embarcação. Quilha cortando a água, vento solapando as velas - tão brancas que doíam na vista só de olhar. Cordas tesas, manivelas sob a pressão da força do afogueamento do mar. E de repente: descia do alto da montanha de água numa queda impetuosa. até quando resistiria?
Foi então que o carro parou na pista, sem gasolina. Tentei por duas vezes pô-lo em movimento de novo. Mas sem sucesso. Olhei-me no retrovisor - tinha o rosto cheio de lágrimas que desciam até a minha boca. Lágrimas - eu repetia mentalmente.
A música não havia acabado. Preso dentro do carro - no cinto de segurança que me apertava todas as manhãs, na roupa do trabalho, no próprio carro inerte, a única coisa que se mostrava livre era meu rosto encharcado que não veria de outro jeito senão no retrovisor, porque ele via o que eu era... um rosto que corria sem nunca chegar.
Assim escutei uma voz cantando:

Tu és um barco no mar
Sem porto pra nunca atracar
Tu és um barco perdido
Sem farol pra te resgatar!

Tua voz eu escuto de longe
Teu naufrágio já posso esperar
Os meus braços, te querem hoje
Vem aqui descansar!

Eu te canto esse canto daninho
Porque no espelho te posso mirar
Se não fosse os teus olhos torvelinho
Esse canto não ia entoar...

Marinheiro, marinheiro
Cadê tua glória, teu mar?
Onde tá o teu sal, tua vida
Pra eu abraçar?

Não te espantas com a tormenta
Com a água a te afogar
São lágrimas no teu rosto
Essas que te tentam calar!

Marinheiro, marinheiro
Não adianta desviar
Os rochedos são tão brancos
Mas eles a noite vai camuflar!

Era a camponesa. A música ainda não havia acabado quando vi, inertes na frente do meu carro, dois cães e a camponesa de costas para mim - jamais tivera ficado assim. O que desejava? Por que me ignorava ficando de costas? Então ela começou a andar - ia para o casarão branco. A música já estava se findando quando escutei os dois nomes pronunciados pela voz feminina da camponesa:

- Ninerute! Creonte!

E depois os cães não estavam mais perto de mim, mas ao lado do portão da casa branca e aos pés da camponesa que, de costas para mim, andava para a alameda de árvores pendidas, sem nunca olhar para trás.
Acordei dentro do carro, despertado por Áurea, às oito horas da noite, já estacionado na frente de casa. Ela tivera vindo verificar a sinfonia que estava escutando do quarto e, depois, só achou-me dormindo e ensopado de suor - o bolero havia acabado.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Os Cães do Inferno - Capítulo XIV




XIV
Assim, depois de um dia de trabalho como há muito não sentia sobre os ombros, saí pela porta de serviço. Desci um lance de escadas mal iluminadas, depois outro, e mais outro. Estaquei. Apoiado nas paredes tateava experimentando a sensação de não ver com os olhos abertos. Então desci tão rapidamente e tão cego e confiante que não admitiria cair ou tropeçar ou sequer fazer algum barulho, porque agora descobria que o silêncio era amante da escuridão e que, se você fosse hábil o bastante, poderia tocá-los sem que eles percebessem. e eu descia com as mãos leves e afagantes, que roçavam nas paredes como a boca de uma criança no seio da mãe. Eu corria com a respiração lerda e sufocante e quase num vôo pulava incólume e silencioso num corredor, porque não mataria o silêncio com nenhum barulho.
Parei para descansar num corredor que cheirava à fumo e à morte. Era impressionante o magnetismo: porque sempre a morte, sempre a escuridão, a podridão, me atraíam e me pareciam sempre belas e donas de uma verdade incomum e cotidiana? Por que, ao contrário da maioria, não me fechava contra o medo, o terror, e a solidão? Por que não adorar a luz, o brilho da água banhando-se de sol, as cortinas tremulantes de uma sala ampla e arejada? Por que não amar com o amor conhecido e abandonar a miséria das paixões avassaladoras? Mas eu queria escombros, queria ruínas e pó. Queria retornar à época imemorável do nada, quando uma voz rasgou o silêncio e matou a escuridão. Descobria, invariavelmente, que vivia um outro tipo de vida, onde viver ao avesso era viver ineditamente. Para mim, agora, como nunca antes, experimentar o que ninguém ousara experimentar, e mesmo se fartar desse exótico banquete, representava a vida que desistira de viver até hoje. Descer aquelas escadas era navegar por dentro de mim.
Incitei-me a prosseguir. Penetrei por mais um lance de escadas e por mais um outro. Então percebi ruídos de vozes distantes e apagadas. Vozes fugitivas que em tudo arrastavam cordas e correntes. Era uma voz que chamava pela cumplicidade e que queria amarrar e acorrentar a outra: lançando-se feroz, bravia, apesar da estaticidade do ar e da tremulação da outra voz vacilante. Eu continuei descendo, e descendo cada vez mais. As vozes foram aumentando, tornando-se mais vivas e movediças e sussurrantes. Falavam mais perto de mim, me jogavam na parede, me ameaçavam prender e a escuridão permanecia - mais negra e parada. Alcancei mais um corredor, que em tudo se parecia com o outro onde eu havia parado. Mas tinha um cheiro de fumaça mais forte, latente - e as vozes, que antes escutava distantes, agora eram próximas. As palavras pronunciadas naquele chiado típico de segredo, beijavam-se no silêncio aterrador daquele encontro. Um homem e uma mulher, ou dois cigarros, conversavam no escuro. A luz vermelha luzia forte e depois fraca na ponta do fumo. Em seguida um suspiro e depois as palavras se beijavam no sussurro abafado da revelação. Então o homem sorvia sua vida em mais um trago - a luz luzia forte e depois fraca: mais um suspiro vermelho.
- O que? Grávida?
- É.
- Eu não acredito!
- O que é que você acha? Que filhos vêm com a cegonha?
Uma tragada, uma luz vermelha e um suspiro.
- Você quer me ferrar?
- Quem vai carregar esse filho sou eu! Quem está ferrada aqui?
- Eu sou casado!
Agora ela acendia outro cigarro. O dedo nervoso batia o isqueiro com voracidade, e uma chama azul acendeu o seu cigarro. Uma tragada. a luz vermelha cortando a negridão e depois um suspiro - fumaça.
- E eu sou solteira, querido! Não tenho pai, mãe, irmãos...
- Eu não posso assumir essa criança. Você vai tirar...
Um soluço. Talvez uma lágrima muda caindo no chão.
- Eu nunca tive filhos... - uma tragada vermelha. o cigarro suspirava.
- Querida, eu te amo, você sabe... - carniça. Um brilho vermelho. Dois dedos agonizantes esmagavam o cigarro na parede.
Um pigarreado sonoro, o barulho de uma mão afagando um rosto estupefato pela notícia - ele alisava a própria face. Depois, o barulho de um corpo largado no chão: ela quedava-se vencida.
- E agora? - fumaça se elevava lerda dos dedos da mulher.
- Não chore, amor. Eu vou me separar... aí poderemos ter quantos filhos quisermos...
Um soluço, depois outro. As lágrimas agora falavam.
- Não chore, não chore...
Uma súplica, e depois um beijo para emudecer o grito mudo do silêncio interrompido pelos soluços dementes da mulher. E ela continuava. Soluço após soluço, lágrima após lágrima.
- Pare de chorar! Por favor, pare de chorar! - falara isso com o império dos comprometidos, com o falso amor da carne medrosa de um corpo autofágico.

E a mudez se fez total. Foi possível ouvir o som do erguer da mulher. Roupa batida no autoflagelo dos podres de pó, com as mãos em riste contra as pernas, costas, nádegas... colo. Tragou mais uma vez o cigarro terminal entre seus dedos, e lançou um último olhar para a brasa vermelha e brilhante. Jogou o cigarro no chão, olhou-o com olhos de mãe e pisou-o - ali jazia o seu filho.
Eles saíram calados percorrendo a extensão do corredor escuro. No fim entraram por uma porta e se esconderam na luz. a claridade havia sido tão intensa que não conseguira ver quem eram os dois.
Permaneci parado por mais cinco minutos. Talvez velei um morto fedorento, talvez apenas me tivera deparado com um pedaço de carne podre no chão - não sei. a verdade é que fedia.
O cheiro de fumo voltou a incomodar-me na relação inversa que uma carniça atrairia um urubu. Continuei a descer as escadas quase morto, até chegar ao estacionamento.
Dei mais alguns passos e me vi perseguido pelo subgerente que, desesperado, queria desejar-me boa noite antes que eu entrasse no carro.
E eu queria apenas respirar limpo outra vez.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Os Cães do Inferno - Capítulo XIII


XIII


Ao chegar no Banco de Alto Condado, onde eu era gerente, olhei a minha volta - vi a minha mesa, a foto antiga da cidade de Alto Condado, de quando o banco havia chegado no local e, por fim, a minha cadeira. Depois percorri a sala e mirei, da janela, a nova cidade de Alto Condado - como havia mudado! Igual apenas poucas coisas contadas à dedo: duas igrejas católicas, com suas cúpulas brilhantes, a prefeitura no prédio centenário e sua fachada branca e bordô, a igrejinha gótica de dona Milú, com aqueles vitrais coloridos, a praça do Retiro, com uma estátua em bronze - aliás muito suja de cocô de pombo - de um homem que nunca tive a curiosidade de saber quem era, uma rua com o asfalto cortado pelos trilhos dos bondes e uma estação desativada de trem. Eram os pedaços que sobraram da antiga Alto Condado. Depois, olhando uma propaganda do banco, que estava presa na parede da minha sala eu li: Com o desenvolvimento e a chegada do Banco de Alto Condado tudo mudou: deixe essa mudança entrar na sua vida também! Abra já uma conta! - no cartaz publicitário existia uma foto velha e uma nova pra mostrar a diferença. E eu disse para mim mesmo: desenvolvimento?!
Então veio o subgerente que assumiu o meu posto enquanto eu estava doente. Observou-me durante um tempo, enquanto eu olhava ainda, o cartaz publicitário e perguntou-me:
- Mudou o Natal, ou mudei eu? O senhor se lembra desse?
Virei de súbito e continuei calado. Então ele prosseguiu.
- Talvez não... já faz algum tempo. Aquela propaganda onde eles mostravam uma agência antiga do nosso incrível Banco no Natal e depois uma nova agência também no Natal. Pra mostrar a diferença, entende?
- Ah sim... claro que lembro...
E novamente o silêncio imperou.

Então ele cumprimentou-me e disse que havia sido muito difícil conduzir o banco sem a minha liderança. E eu pensei: que tristeza. Nada além de mentiras. Não passava de um tratante que desejava, de longa data, ocupar o meu cargo no trabalho - e o falo com uma certeza dos que não tem mais dúvida alguma da desconfiança. Já, inúmeras vezes, pude escutar diretamente da boca do próprio Luís, o que pensa de mim. Pena que não tinha coragem de dize-lo na minha frente. Talvez aí, encontrasse, pela primeira vez, algum consolo e prazer ao escutá-lo uma vez que fosse corajoso. Descobria sempre essas revelações em conversas de banheiro, onde Luís expunha, com outro subalterno, toda a sua indignação invejosa para fora com uma força inimaginável. Triste Luís. Não sabia ele que, algumas vezes, eu encontrava-me oculto num biombo, ou sentado numa privada. Lembraria agora, até o suspiro que dava ao terminar de trucidar-me - era longo e libertador.
Na verdade, de todo o banco, só poderia excluir da definição dada a Luís - o sub gerente, o auxiliar de serviços gerais, seu João, e a minha secretária, dona Carmen. O resto se encaixaria, sem brechas, no tratado dos interesseiros, que davam do bom dia até o boa noite por pura burocracia formal, para agradar os superiores. Seu João não. Se estava com raiva não me dava bom dia quando eu passava. Ele ficava amuado no canto, com a vassoura na mão e o cachimbo velho pendido na boca, quase caindo. Resmungava que tudo era uma merda e quando eu dizia “bom dia seu João”. Ele respondia macambúzio: só se for pro senhor! Então eu saia rindo.
Com a dona Carmen era a mesma coisa:

- Bom dia dona Carmen.
- Pra quem, Doutor? Eu mal consegui dormir essa noite com o ronco do meu marido no meu ouvido e estou quase desmaiando aqui. Só vim trabalhar, porque se eu falto, me tomam o emprego. Aí, na outra semana, se eu passo aqui, já têm uma outra secretária mais bonita, loira e tudo...
- Até que não seria uma má idéia...
- Só o senhor pra me fazer rir, mas a verdade é que, se eu falto...

E dona Carmen falaria por mais duas horas sem perceber que me contou todos os seus problemas de todas as noites mal dormidas depois do décimo ano de casamento, e que se não suportasse tudo isso - relativamente calada - perderia o emprego. Então eu seguia para o meu escritório feliz - sim. Feliz - porque pelo menos três vezes por semana podia descobrir, no início do meu dia, que se seu João ou dona Carmen sentissem raiva de mim ou ódio, eu ficaria sabendo.

Os Cães do Inferno - Capítulo XII



XII

Também, como dona Milú, passou a vir à minha casa uma outra vizinha que morava na terceira casa da esquerda. Uma senhora gorda que tinha um marido desempregado e um filho gordo. Era D. Zulmira, Seu Nestor e Lula, o menino gordão. A mãe era quem sustentava a família fazendo doces que o garoto certamente comia na sua maioria. Quando vinha em casa, sempre trazia alguma coisa para oferecer e passava a manhã conversando com minha mulher, talvez na esperança de que, em algum dia, ela fizesse um grande pedido de doce que pudesse ajudá-la a levar a vida com mais facilidade. Era uma mulher dos seus cem quilos que parecia ter na garganta um alto falante e sempre ria fartamente com toda a força, até ficar vermelha - se sacudindo toda e depois tossindo pra tentar parar de rir. Tudo nela era demasiado grande - seios grandes, bunda grande e batida, decote grande, braços grossos demais, pernas de elefantíase descomunal. O filho a acompanhava no tamanho. A cara rosada, bem esticada e bochechuda. Tinha uma boca pequena, mas uma voz alta e fina. Os dedos das mãos eram de anões e sua barriga era enorme como os peitos da mãe. Assim como a mãe, vivia queixando-se de calor e era viciado em coca-cola - às vezes chegava a pensar que ela trazia os doces em troca dos litros de coca-cola que havia na minha geladeira. E quando o menino pedia para repetir o copo a mãe dizia:

- Só mais esse viu, filhinho?
Ao que o menino respondia rindo:
- Tá bom mãe - com aquela voz aguda e alta.

Então Heloísa enchia mais uma vez o copo do garoto e isso se seguia repetidas vezes até que acabasse a garrafa e a mãe dissesse por fim:

- Meu Deus, veja só! Acabamos com a garrafa! Já está bom Lula.
E Heloísa dizia:
- O que é isso Zulmira!? Deixe o menino se alimentar!

Então Áurea descia as escadas e procurava a coca-cola e não a encontrava em lugar nenhum senão na barriga de Lula. Eu, da escada, apenas ria e contava os segundos para ver Áurea passar por mim como um foguete praguejando contra a nova visita. Era quando chegava Nestor procurando a esposa que saíra de casa duas horas antes, mas que ele só sentira falta nesses últimos três minutos. Barrigudo, beberrão, com a barba por fazer há quatro dias - e que só faria quando sua esposa o obrigasse - um palito de dentes preso nos lábios e o rosto excessivamente oleoso, como se não o lavasse já há muito. Andava sempre com um palito na boca, e podia falar qualquer palavra com ele lá, sem nunca deixá-lo cair no chão - como fez questão de demonstrar-me quando veio pela primeira vez em minha casa. Pobre homem - agora eu sabia porque não conseguia emprego. Eu poderia dizer que não trabalhava desde os quatro anos de Áurea, e constatando que minha filha tinha dezesseis, quase dezessete anos, afirmaria que Nestor não trabalhava há doze anos. Essa era a sua profissão. E eu sentia a desgraça encarnada nele. Mas sua esposa, toda vez que o via, enchia-se de vida e, apesar de Nestor não ser mais do que um pobre desempregado, aquela mulher gorda e ensebada, virava outra, e seus olhos alagavam-se de lágrimas felizes até que ela falasse:

- Esse é meu homem! Já vou voltar querido.
Ao que ele respondia sorrido.
- Já tá quase na hora do almoço amorzinho. Vamos indo Lula.
- Ah pai. Espera eu ir no banheiro.
- Nada disso. Vai lá em casa mesmo.

Depois iam embora. Zulmira toda orgulhosa, Nestor arrastando o menino pela orelha, e Lula com as calças completamente molhadas do que antes fora coca-cola.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Os Cães do Inferno - Capítulo XI


XI

Tudo começava novamente. No espaço de um mês tivera vivido o que em uma eternidade não viveria sem aqueles jornais e aquele casarão branco com sua camponesa e seus dois cães. Voltava, mais uma vez, à tal busca que começara, antes, por curiosidade e, agora, por conta da minha própria vida.
Enquanto permanecia na cama, deitado por ordem médica, lia invariavelmente os jornais que houvera colhido nos arquivos da cidade e, depois, os que Áurea me trazia das bibliotecas quando voltava da escola. Assim passei o meu tempo consumido por fotos e textos da tragédia do Alto Condado - não demoraria a voltar ao trabalho corriqueiro e, eu já não suportaria o cotidiano agora.
Mas a recuperação, em casa, não havia sido de toda ruim. Vizinhos que jamais entraram em minha casa passaram a freqüentá-la quase que diariamente, inclusive uma velha senhora protestante que sentava-se ao meu lado durante o entardecer e ficava perguntando-me pasmada:

- como o senhor quer melhorar vendo essas fotos o dia inteiro?
- Elas me distraem, dona Milú.
- Deus me livre! Como algo assim pode distrair alguém? Leia a Bíblia!
Isso sim é distração de verdade. A vida de Cristo!

Era impossível não rir, e as tardes se passavam nessas discussões sobre o que seria mais ameno para um doente de cama: uma Bíblia ou um calhamaço de fotos e jornais velhos com histórias de assassinatos. Em outros momentos, tenho que segredar, essa situação me causaria espasmos de raiva, talvez até perceptíveis à visita religiosa, ao apanhador de almas despreparadas - mas agora devo dizer que uma nova situação se instaurara. Não que, por uma misteriosa mudança, fruto da passagem pelo hospital e da má situação atravessada, eu tivesse assumido uma religiosidade ou uma tolerância à religiosos, não. Tudo ocorria como uma concessão ou ainda mais, um estudo – para o qual minha mente havia se aberto sem que eu tomasse conhecimento para quê. Essas reflexões, no entanto, não duravam até que Dona Milú pudesse achar um salmo ou um corinto que a seduzisse o bastante para calar a boca , lê-lo mentalmente e depois alto para que eu ouvisse. Também havia momentos de silêncio em que D. Milú fechava o livro de que tanto gostava e começava a chorar - e o fazia de tempos em tempos, lamentando a morte de Seu Germino, o falecido marido que partira há dois anos. D. Milú era uma senhora dos seus setenta e cinco anos de idade, com o rosto sulcado e seco, provavelmente, por esses ataques de choro. Usava sempre vestidos longos e discretos. Era magra como um pedaço de pau e, eu não saberia dizer se isso foi durante toda a sua vida ou se só depois da morte do marido. A verdade é que tinha uma cara de sofrimento permanente, mesmo quando, de repente, conseguia soltar um sorriso daquela boca murcha e sem graça. Os cabelos - todos brancos e bem finos – ela mantinha presos por tiara na frente e livres na parte de trás, fazendo cachos de prata.
Talvez não tivesse filhos, porque ninguém nunca a viu recebendo visitas em sua casa, nem alguém dizendo ser seu parente ou algo parecido. Sua vida era seu marido e, com sua morte, os cultos. Ocupava seu tempo com chás beneficentes, trabalhando na creche da igreja - fazendo atividades que limpavam a alma - como ela gostava de dizer quando lhe batia uma felicidade num rompante.
Depois que a conheci, da janela do meu quarto, lá no alto, via-a passar pela minha calçada indo para a “purificação” pelo mesmo caminho de todas as manhãs - rua à direita, em frente, à esquerda no final - e lá estava ela sob uma cruz e uma ogiva. E eu pensava: o que poderia ter feito uma pessoa na vida para precisar tanto de limpar a alma?

terça-feira, 25 de março de 2008

Capítulo X - Os Câes do Inferno




X

Minha esposa, dirigindo o carro, andava vagarosamente pelas estradas do Alto Condado. Eu olhava-a pelo retrovisor lembrando do dia em que a conhecera. Minha filha alisava meus cabelos e olhava dentro dos meus olhos tentando adivinhar o que eu pensava - e uma hora ou outra descobriria, porque ela tinha olhos de gato na noite, e eu a deixava olhar-me, sem resistência, caído dentro dos seus olhos verde – amarelados, incapaz de levantar-me senão por calculado descaso dela, um piscar de olhos.
O crepúsculo descobria a noite quando chegamos em casa. Antes de entrar, parei em frente à porta e pude ver Heloísa contra o Sol que desaparecia - ela era linda desse jeito e eu lembrava que era assim que costumava amá-la quando chegava do trabalho: casualmente ao pôr do Sol. Nessas horas, a luz a enchia e ela era, própria e unicamente, algo sobrenatural. Tomava, no dia, as feições áureas da luz e desafiava, como a água ou vento, a própria essência da claridade. Estar na luz era estar vivo. Agora o Sol me cegava. Não via na claridade desbotada, a luz que luzira em Heloísa outrora. E, de repente, tudo o que o branco antes elevava e fazia novo, agora escondia na negridão, na ofuscação do olho contra a luz, fechando-se, apagando um luzidio queimor de Heloísa, que era o próprio Sol, e ardia como ele, contagiando-me com suor, gosto e gozo.
Mas em mim, agora, não mais ardia o tal fogo, não a mesma chama luzidia de outrora, mas um consolo de luz fria e agradável, que brilhava todas as noites, quando a queria ver. Então invariavelmente lembrava-me de quando a tive nos meus braços pela primeira vez e, ela lançada como uma explosão de dourado, jogava-se por sobre mim com tanta intensidade que chegava a unir-me a ela acreditando não mais largar. - sim! Não lhe soltaria mais o corpo, nem a alma, que peguei pela primeira vez e experimentei como minha, nem seu gosto e seu balançado e seus olhos, tão vivos que me faziam viver por obra apenas de um olhar. Nem os seus cabelos de ouro, e suas mãos de cigana e seu corpo de mármore branco esculpido. E recordava o quanto a amava por simplesmente amar! E podia até sentir que ainda resistia uma fagulha, a chama lerda de um fósforo fosforilar no meu peito sem Sol - e tudo isso não passara de um vento frio de outono que me afagava a face enquanto eu preferia viver o passado.
Longos 15 minutos se passaram. Minha esposa havia entrado e me chamava há algum tempo. Andei devagar na passarela de cimento, estaquei na porta e mirei em direção ao casarão - dois cães me olhavam e eu quase pude sentir as suas respirações, quando Áurea puxou-me pelo braço dizendo:

- apareceram aí de uma semana pra cá...
- Uhhm?
- Os cachorros, pai.
- É... eu lembro.
- Do quê?
- Deixe, Áurea. Esqueça. Vamos entrar que sua mãe já está ficando preocupada com essa demora.

E entramos juntos. E da minha cabeça não saia outro pensamento senão que aqueles cães eram os mesmos que vira pela janela, quando eu caia na sala da minha casa.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Parábola dos Ricos



Isso deverá vir como uma carta fechada ou com uma página antecedendo com os dizeres: cuidado , parábola curta e grossa.


Parábola dos ricos


Era um casebre. O ano não interessa - isso se repete todos os anos e dias que se possa imaginar. O lugar... bem o lugar pode ser em Alto Condado mesmo - porque Alto Condado é em todo canto. Existia um pobre e um rico - e você já pensa o como essa história é batida e chata. E na verdade é tudo isso mesmo, e se quer saber me faria um grande favor se pulasse essa parábola. Mas à mim cabe escrever para os que não desistiram. Então...
Estamos na favela. É uma daquelas festas onde pobre come - e existem no ano ao todo quatro: A páscoa, Quaresma, Cosme e Damião e Natal - no resto do ano pobre vive de um jeito que ninguém descobriu ainda. Mas vive, certamente, até o próximo natal onde os homens de bom coração sobem o morro e, caridosamente, enchem a pança da meninada que já nasce de bucho grande e inchado. As mães, desconfiadas, ainda conseguem um sorriso murcho e sem força, mas no fim agradecem e dizem, com os braços erguidos para o céu: graças a Deus.- amém. Mas deixemos isso para lá porque ainda não chegou o natal. É outra festa.

As crias pobres:

Um menino brinca com seu pai no campo pelado do topo do morro. Rola a bola pro guri. Ele chuta e o pai, goleiro, esforça-se para defender a tumba colocada do filho. A pelota voa bem onde a coruja dorme - gol, grita o filho - o goleiro, derrotado no seu vôo, ri fartamente dizendo que ele se tornará um ótimo e rico atacante de algum time italiano. As roupas encharcadas de suor e barro molhado, terminam compondo o quadro. O pai manda o menino pro gol, o guri se nega, o pai o chama de desgraçado e sai correndo pesadamente atrás do filho que ri de morrer - eu sou é atacante, goleiro frangueiro! Depois abraçam-se e entram no barraco juntos, como duas bolotas de barro coladas.


Os infantes ricos:

O Henrique Lisboa, filho primogênito do casamento de Laurinha Meneses e Rodolfo Lisboa, dá o seu mirim ar da graça no clube de tênis Sabournai - diz a coluna social dum jornal qualquer. Nas calorosas tardes de Quinta -feira o garoto marca presença com o seu técnico, o especialíssimo Ricardo Ruiz para pôr em ordem seu porte todo atlético - continua a ler o pai sentado numa poltrona confortável de qualquer grande mansão de Alto Condado. Eles nem se viram hoje, mas o pai está todo orgulhoso e chama a mãe para mostrar a grande matéria jornalística. Ela diz que não tem tempo, porque está organizando um five o’clock beneficente na casa de Lucinha Brandão. O pai joga o jornal do lado, ajeita a gravata, chama o motorista e sai pra trabalhar.

à noite, um pobre motorista chegando no seu barraco após um dia cansativo de trabalho comenta com sua tísica mulher:
As crias pobres tem tudo e não possuem nada. Os infantes ricos possuem tudo mas não tem nada.
ao que a mulher responde acabrunhada:
Tá doido é homem! tu nunca fosse de dizer essas coisa ilustrada! Foi o Doutor que te disse?
ao que ele respondeu:

não. eu li no jornal. sabe... até que naquelas colunas sociais tem alguma coisa que presta.