segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Os Cães do Inferno - Capítulo IX



IX

Nada sobrara de mim, que não frangalhos e miséria. Uma bossa rasteira e lamuriosa, que pertencia a alguma época da minha adolescência, fazia-me lembrar de um velho amigo que morrera jovem e feliz - assim abria meus olhos pela primeira vez - encharcados de saudade e inveja.
Com esses mesmos olhos, percorri o quarto soturno do hospital e apreendi, como se tivesse acabado de nascer de mim mesmo, a minha própria criação.
Da janela escutava meus novos sons - de crianças brincando no parque, de aves piando, de carros batendo: nada mais. Depois uma luz entrecortava-me e eu descobria que essa luz quente e movediça não me pertencia, mas sim o escuro do quarto e aquela noite de cortinas.
Então de mim poderiam se ouvir os esperneios de um bêbado acordando num prostíbulo fétido, mas nunca os louvores de uma beata recebendo Cristo - e não me dizes Virgem Maria com um sobressalto! Eu nascia novamente de um escuro falho e causado por cortinas de linho - pesados e perolados pedaços de pano que pendiam do teto. E não da luz! Agora lembrava-me que quando saíra de minha mãe, também nascera da negridão do seu ventre e, que lá, a luz me entrecortava como aqui.
Sim: eu nascia de novo. E nascia de mim. E pulsava a respiração de um parto nas minhas mãos - mãos suadas - e eu próprio chorava minha alegria, porque não havia mãe que o fizesse por mim, e eu mesmo sentia as minhas dores, porque era eu que me rompia, do meu mesmo tamanho - não menor como no primeiro nascimento, não saído do ventre de alguém- mas saído do meu corpo, de toda sua extensão, me rasgando, inutilizando o eu que dera a minha origem e negando o nascimento que tivera de minha mãe.
Agora nascia de todo. E não de leite me alimentei neste dia, mas da minha carcaça, não de esperança nutri os meus sonhos, mas de realidade. E não da realidade que me dera o mundo para viver, mas da minha própria.
E lá no fundo ainda tocava aquela bossa. Mesma bossa que me dizia tanta coisa... e eu falava: Pai - chorando!

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Os Cães do Inferno - Capítulo VIII



Luz e luz. Branco sobre um branco maciço e sem fim. Portas lacônicas abriam-se com olhares perdidos de almas perdidas. Homens e mulheres andavam cabisbaixos. Estavam numa ponte, era esse o motivo de olharem para baixo, eu me dizia. E eu, amarrado, preso, estático era conduzido ao julgamento. Lá sentados no tribunal: a Morte, a Vida, a Desgraça, a Felicidade - acuada e franzina na última cadeira das testemunhas - e por último o Juiz que não se apresentou - coberto por um capuz à la morte. Ao contrário do que pensam, a Morte não andava armada nem vestida de preto. Era uma mulher que possuía encantos particulares e interessantes. Sua roupa era vermelha, decotada e se assemelhava a de uma espanhola em trajes de dança flamenca - com os mesmos cabelos negros, mesmos sapatos altivos, e os mesmos olhos faiscantes de um cavalo indomável - seria a Carmen de Bizet? Ela disse-me, em segredo, que gostava mesmo de matar usando a vida - e nesse momento, não pude deixar de perceber, num rompante de psicanalista, que a Morte não passava de uma amante não correspondida que roubava o próprio fruto de amor, sem no entanto ter, em nenhum momento, vida. Então, de súbito, deparei-me com uma cena triste e comovente - uma mulher sem graça, magra e apertada num vestido de chita barata estava acanhada e quieta num canto. Ao ver-me estupefato, a Morte sussurrou-me no ouvido que se tratava da Felicidade.
Caminhei em sua direção com passos encolerizados e, naquela hora, não podia deixar de perguntar a única coisa que explicaria o meu legado vivido de infelicidade. Perguntei, porquanto, por onde ela tivera andado. O que se seguiu foi um balbuciar de lábios dementes e uma resposta enigmática em alemão: Ich bin lahm, und gehe nichts! Eu nada entendi do que falara, mas vendo seus olhos encharcados de lágrimas, percebi a cadeira de rodas em que estava sentada - e eu jamais pensara que iria sentir pena da Felicidade.
Depois a Desgraça apresentou-se e veio cheia de si própria e acompanhada. Falou-me com íntima propriedade sobre minha vida, enquanto a Vida, envergonhada, ensaiava alguma coisa que me dizer, andando de um lado para o outro. Passaram-se três sóis de conversa acalorada com a Desgraça - era assim que eles contavam o tempo por aqui. Velhos e tristes momentos de que ela lembrava-se sem que eu precisasse ajudá-la. Aí então veio-me a Vida - e era uma mulher extraordinária! Mas tinha-se de conquistá-la para falar-lhe. Então ela voltou para seu lugar sem dizer-me nada. Olhava suas pernas e quadris com desejo. Ela apenas enrubescia e brechava-me pelos cantos dos olhos. O único que nem levantara a vista para me ver, fora o Meritíssimo Juiz. Talvez fosse ele o culpado de tudo aquilo.
Então ele - o Juiz - ordenou que tudo começasse a ser dito. A Desgraça foi a primeira a levantar-se e tomar o lugar das testemunhas. O Juiz perguntou-lhe o que achava de mim. Ela disse: Meritíssimo, como posso descrever uma pessoa tão agradável como o senhor aqui presente? Durante toda a minha vida, com a licença do uso da expressão - disse olhando para a Vida. Pareciam ter um caso, pois nesse momento a Vida dera uma cruzada de pernas fitando-o - convivi com ele sem maiores problemas. Um homem que não dificultava meu trabalho. É certo que tinha tudo para ser feliz. Mas ele morava em Alto Condado, a Felicidade, do jeito que anda - disse quase rindo - não conseguiria chegar lá nunca! O Juiz, impaciente disse: você já sabe o procedimento... dê a sua opinião e faça as últimas considerações para que a Felicidade defenda-se da acusação. Então a Desgraça continuou: Bem... como ia dizendo, o senhor que aqui está é um Lord como falam lá na Inglaterra - disse-o fitando o Juiz com certa empáfia velada. Não tenho nenhuma queixa representativa a pronunciar neste Tribunal.
Era, de fato, um julgamento particular. Não seguia os procedimentos que eu era acostumado a ver, ou mesmo escutar de conversas com os advogados do banco. Aqui as testemunhas além de dar o seu testemunho, acusavam – o que tornava tudo ainda mais dramático. Se pensava antes que no Último Julgamento havia presentes Deus como juiz, Cristo como advogado de defesa, o réu e o demônio como procurador, acusador implacável em busca de algumas almas perdidas, agora as coisas eram ainda piores. Em vez de um acusador, eram quatro e eles se acusavam também mutuamente, num jogo em que todos poderiam ser culpados ou inocentes – e que de alguma forma tinham que prestar contas dos seus trabalhos ao juiz; e este, por sua vez, definia, sabe-se lá com base no quê, como os seus trabalhos haviam sido feitos durante a vida do réu, além da própria vida deste. No entanto, se por um lado os acusadores eram muitos nesse processo, no outro, no Último Julgamento, segundo dizem, o advogado era filho do juiz, o que sem dúvida pesava na hora do veredicto. Bem, pelo menos era isso que eu pensava naquele momento ou, na verdade, nenhuma daquelas formas existissem na prática.
Logo que dito isto, o Juiz na sua pressa ordenou à Felicidade que se encaminhasse ao banco das testemunhas. A Felicidade, bem baixinho perguntou imediatamente: Meritíssimo, posso ficar aqui mesmo? O senhor sabe que não é possível estar às voltas por aí... O Juiz respondeu: aqui no meu Tribunal será respeitado o rito. Pode se encaminhar ao banco das testemunhas. Então a Felicidade de mal humor começou a mover sua cadeira de rodas para onde o Juiz havia mandado. Ao passar de mais três sóis - extremamente claros - chegou a Felicidade no lugar de direito e começou a falar. Então eu pensei que mesmo que a Felicidade subisse em locais altos, eu poderia não ter paciência para esperá-la - e a Desgraça sussurrou-me rindo no ouvido que esta havia sido muito boa e que moderasse meus pensamentos no Tribunal porque como Ele, a Vida, a Morte, o Juiz e a própria Felicidade podiam escutar pensamentos. Surpreso, fechei-me num silêncio sepulcral e passei a prestar atenção no que dizia a Felicidade. E ela falava: Meritíssimo, como sabe ando cansada com as chacotas da Desgraça! Não é de hoje que escuto esse tipo de acusação. Mas o fato é que não tenho verdadeiramente como defender-me ... e o Senhor bem sabe disso também. Mas parece até que gosta de ver-me sofrer, pois sou obrigada a defender-me dessa acusação indefensável em todos os Julgamentos que se fazem aqui nessa Comarca, e especificamente nesse Tribunal. Mas como sempre, venho justificar-me perante o senhor Juiz da minha falta. Bem conheces minha vida de privações... a cidade, sem acessos para deficientes, dificulta a felicidade em lugares do Terceiro Mundo. Em compensação, lá na Alemanha, Japão, Estados Unidos, tenho eu mostrado muito serviço. Não se pode executar o seu trabalho decentemente sem a ajuda desse Estado morto! Vai ver se lá na Dinamarca existe menino barrigudo com fome! Não tem um! A Falência do Estado é que é a culpada por tudo isso - e falou olhando para a Morte, que fora mencionada pelo apelido. Novamente apressando a declaração das testemunhas o Juiz mandou que a Felicidade retirasse-se o mais rápido possível do banco das testemunhas, declarando que a Morte deveria tomar lugar no banco e defender-se. Passados dois sóis havia a Felicidade retirado-se completamente da cadeira.
O tribunal era esplêndido. Com paredes recobertas por Mogno e toda a sorte de madeiras de Lei, proibidas de serem extraídas. Logo a Morte tomava o lugar já antes pronunciado. Era rápida e objetiva. Contou que seu trabalho, no meu caso, havia sido feito com vagar e prazer. Detalhista como é, não deixou escapar nenhum pormenor ao Tribunal. Pautou sua defesa no seguinte pilar: As pessoas nascem e vivem durante muito tempo. Não é culpa dela, fim derradeiro e fator que só se apresentará no fim da vida. Mas sim da Vida que persegue os vivos desde o nascimento e os deixa entediados. É por isso que quando ela aparece - a Morte - todos abraçam-se e querem partir. Acabando de falar isso, deu por fim sua explanação. Logo o Juiz pediu que a bela Vida defendesse-se.
No entremeio da locomoção da Vida, veio-me a Morte ao pé do ouvido e disse que ainda havia uma chance para mim se soubesse usar de artimanhas adulterais - e o falou fitando a Vida com fogo nos olhos. Pensei, então, que a Morte, assim como a Desgraça era lésbica, e que a Vida deveria ser ninfomaníaca. Tudo isso custou-me advertência da parte do Juiz, e olhares lânguidos por parte da Vida.
Ao sentar-se começou a Vida a testemunhar. Disse por sua vez que era manipulada pela Morte e que não era culpa dela o findar de alguém. Mas sim, que era este, fim natural de todos. Logo cruzou as pernas vagarosamente em minha frente e continuou a defender-se. Eu olhava-a como minha última chance. A Morte incentivava-me mentalmente a prosseguir no meu intento de conquistar a Vida. Disse a Vida: Meritíssimo, gostaria de fazer uma declaração que quase nunca faço aqui neste recinto: Admito minha falha perante o Tribunal. A Morte tem razão quanto ao fim de todos... mas como poderia eu manter os vivos sem vida? A vida faz-se dela mesma, enquanto que a Morte faz-se de Vida e a Desgraça do seu séquito de Tristeza e Pesar. A Felicidade anda na Desgraça para ser reconhecida e, portanto necessita dela para existir.
Tal declaração espantou a todos no Tribunal e o Juiz perguntou a Ela se queria desqualificar as testemunhas que ali depuseram. A Vida respondeu que não. Que este não era o seu objetivo. Mas que desejava pedir clemência ao Tribunal por mim e que a livrasse de um Processo posterior por essa negligência que acabava de admitir. O Juiz taciturno e nervoso pediu que a Vida levantasse e voltasse para o seu lugar, pois iria anunciar o Veredicto.
Mais três sóis passaram-se. Então a Vida levantou-se e me deu na mão as chaves do seu apartamento sussurrando: às oito lá em casa. Leve a Champanha.
O Juiz mandou que todos erguessem-se e anunciou solenemente o Veredicto: Diante dos fatos apresentados nesse Tribunal justíssimo, eu O Juiz, acolho o pedido da Vida em favor do senhor aqui presente e, condeno a Vida a sustentá-lo vivo durante mais um período, cujo o final seja apenas conhecido pela Morte, onde novamente se reunirá esse Tribunal dessa Comarca. Essa sentença deverá entrar em vigor imediatamente quando houver sua publicação no Diário Oficial de ... - falou o nome tão rapidamente que não pude escutar e pronunciou: está encerrada a Sessão.
Houve um murmurinho geral. Todos disseram que não entendiam porque eu havia ganho uma chance. Mas eu sabia o quanto iria me custar: uma noite inteira e uma garrafa da melhor champanha que se podia encontrar por aquelas bandas.

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Os Cães do Inferno - Capítulo VII


Minhas mãos gélidas queimavam com um ardor incestuoso e perseguidor. Ao chegar em casa, com os olhos fixos no aparador, onde descansavam rosas vermelhas, beijei Heloísa e escutei o som quase perdido da voz da minha filha repetindo ligeiramente: papai, o senhor viu as flores que eu mesma colhi?
Tristemente olhava em volta da sala, a poltrona, o espelho que denunciava sempre meu rosto aterrorizado pelos meus pensamentos, a velha lareira que nunca luzia, e por fim, o rosto de minha filha frente à janela que dava para o velho casarão branco. Eu tremia com um tremor longo e desesperante, e ela repetia: pai, o senhor viu as flores que eu mesma colhi ontem? A mamãe me ajudou. Não respondia, apenas andava pesadamente o curto percurso da sala escutando o eco já forte das risadas quase infantis de Áurea. Heloísa acompanhava-me querendo tirar das minhas mãos o pote de sorvete que começava vagarosamente a derreter. Não sabia porque ria, mas logo percebi que eu andava desequilibrado e sem objetivo e que, sem querer, deixara o pote de sorvete cair por sobre o tapete da sala, se derramando. Olhando ainda a janela na minha queda, pude ver dois cães sentados frente ao casarão branco. Depois tudo foi escurecendo. Chegaram ambulâncias, paramédicos e me puseram sobre uma maca dura e gelada. Imobilizaram meu pescoço, furaram-me infinitas vezes com o propósito de injetar remédios e pediram-me insistentemente que ficasse acordado - e eu desejava apenas fechar os olhos - sim. Apenas desejava sonhar mais uma vez se este fosse meu fim. Desejaria infinitamente a camponesa nos meus braços amarrados neste último bolero, e logo me dei conta de que gostaria de morrer numa dança lenta e lamuriosa. Não pediria perdão dos meus pecados à ninguém e clamaria ao demônio um último tango em Buenos Aires. -sim. Dançaria infinitamente nos salões desertos do grande casarão. Só mais um bolero - eu gritava - e mais um tango com a camponesa. E mesmo assim, gritaria à minha esposa que sempre a amara durante toda a minha vida... minha triste vida. À minha filha diria um breve adeus, pasmado e com terror, porque jamais esqueceria do leve sorriso em sua boca quando eu caía de mim mesmo. Sempre lembraria para o resto da minha vida se ainda vivesse e, carregaria nos meus olhos se pudesse viajar... - sim correndo como este carro que agora corre por essas pistas mal asfaltadas desse Alto Condado! E eu respirava o ar mecânico do balão de oxigênio e me dizia: minha filha... minha filha com seios tão lindos... Então desmaiava mais uma vez. E lá, bem no fundo das minhas entranhas, via dois cães me dilacerando o coração.

Os Cães do Inferno - I Carta dos Suicidas



Eu pergunto: qual é o maior medo humano? E um vazio tremendo me cobre o peito e nem sequer o vento alísio me chega aos pulmões, nem sequer posso rezar meu desespero por que não acredito em Deus nessas horas. E eu me respondo: é medo de morrer! Nós temos é medo de morrer! E quase gargalho sozinho pra escutar minha voz e dizer que é mentira. Mas apenas gargalho e escuto minha risada ecoando perdida no quarto. Com as mãos na cabeça levanto-me sobressaltado e com o coração palpitando de medo clamo misericórdia, compaixão... Mas logo me lembro que nenhum homem jamais escapou da morte. Então insulto-me: e você, como vai escapar ? O escuro apossa-se dos meus olhos e lágrimas correm da minha face recaindo nas minhas mãos encharcadas de medo. Um medo líquido que eu não posso prender com os dedos e surrá-lo para que vá embora. Esse medo apenas se espalha e me molha. E eu me respondo: não escapo. Ou espero, ou enfrento! Logo decido morrer com coragem.
O revolver carregado certamente está na mesa de cabeceira e minha filha acordará no quarto ao lado, quando houver o barulho - sim, e talvez até chore. Mas qual das duas mortes é melhor: a que se espera ou a que se enfrenta? Qual a de mais coragem? A com hora marcada ou a do acaso?
Suicidas: ali está o leão deitado na sombra. É uma savana e estamos na África. Não está com fome. Agora balança o rabo para espantar as moscas varejeiras, nossos anjos enviados por Deus, para nos salvar.- enquanto as moscas estiverem voando no traseiro dele estamos salvos! Uma hora depois - e já passaram dez anos- ainda estamos vivos, ele tem fastio.
Nossa morte é remediada por moscas e algumas verminoses. Agora ele nos olha com olhos lânguidos - começa a ter alguma atitude decente - e mexe a pata dianteira decidido a levantar, mas ele apenas muda de posição para não nos ver. Então corremos e esmurramos a sua cara até que se irrite o bastante para nos comer voraz e rapidamente. Ele devora as nossas vísceras e farto daquela cena, joga nossa carcaça sob o sol escaldante. Depois as moscas sentam sobre nossas costelas descarnadas e operam um milagre: renascemos de novo em forma de anjos!
Os não suicidas: estamos na África também. O leão que nos comerá é o mesmo que devorou os suicidas há pouco. Tem um fastio enorme. Se depender dele não come dentro de cinco dias e dorme um sono conturbado, mas feliz. As moscas - os suicidas - cansadas de voar, pousam na traseira do leão e descansam até a hora marcada. Nós esperamos, por que nada temos a fazer senão esperar. Lamentamos a vida dos nossos companheiros suicidas... a vida é tão boa aqui: olha só esse céu azul! Cala boca menino! Quer acordar o leão? - Já fazem cinqüenta anos ou mais. Quem é que sabe?
Nossa morte é remediada pelo sono. Ele dorme tão lindo! Nossa vida é de Deus! Que calor! O sol escaldante queima nossos miolos ao meio dia. Menino: liga o ventilador! Então as moscas voam novamente, e é chegada a hora: vão voar no pé do ouvido do leão! Ele acorda mal humorado, nos vê (os não suicidas), avança em nossa direção e finalmente nos devora. Depois as moscas levam as nossas almas e no caminho zunem uma frase bem baixinho: a verdade é que uma hora ele sairá dali e comerá nossas vísceras!

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Os Cães do Inferno - Capítulo VI



VI


Estava preso - eu dizia. Não podia fugir, nem sonhar totalmente, e com uma freada repentina, com o toque insistente do celular ao meu ouvido, não podia deixar de regressar. Então pensei: por que colocara a Für Elise de Beethoven como toque do meu celular? E descobria mais uma vez que era por que eu não a suportava e, obrigatoriamente, avançaria como um louco até que aquele piano maldito parasse- com o telefone atendido. Mas não dessa vez. Não agora. Não tão perto do campo! Era preciso sonhar -eu dizia- era preciso sonhar! E nessa hora era executado o ápice do Trenzinho Caipira e eu era dono de tudo, e o motor acelerava com o carro parado na pista deserta - quem me seguraria? Quem? Heloísa? Não, não ela! Mas o telefone tocava e tocava e tocava... e meus discos compactos haviam acabado - o que eu estava fazendo?
Alô. Heloísa? E ela me pergunta: por que você demorou a atender? E eu me perguntava agora: porquê? Ah! Porque eu estava sonhado - me vem a resposta - mas eu não diria a ela. É porque eu estava dirigindo. E ela pergunta: pra onde? Hoje é domingo! E eu pensava: realmente! Hoje é domingo. E o que é que tem que hoje é domingo? Não se pode dirigir num final de semana? Mas novamente não diria a ela. Eu estava procurando uma sorveteria... queria fazer de hoje um dia especial. Comer algo diferente. E ela pergunta: isso vai demorar? E eu pensava: demorar? Sim demoraria. Demoraria o resto de minha vida porque eu não dirigia procurando uma sorveteria, mas um campo marítimo - é, um campo marítimo! E onde ficava? Eu não sabia. Por isso ia demorar. Mas outra vez não diria isso para ela. Não amor... qual é o sabor que você prefere? E ela me dizia: Pistache! E eu me lembrava o quanto odiava pistache. Não podia ser coco ou uma daquelas misturas que são vendidas nos postos de gasolina: napolitano, creme com passas... Mas: certo. Já-já eu tô chegando com um potão de 5 litros! E ela dizia: seu danadinho! Que noite hein? E eu pensava: Heloísa não é mais tão bonita como antes. Não está caída. Mas não é como antigamente. E é claro que não falaria isso para ela. Quando chegar nos falamos - e desliguei o telefone finalmente.
O motor havia morrido. O sol escaldante fazia com que a pista de concreto à minha frente produzisse uma onda de calor - era o mar, eu pensava. E este mar marejava como os outros e também era quente como os mares que eu conhecia. Se navegasse um pouco mais certamente encontraria meu campo marítimo! Encontraria sim. Eu sei! Quem sabe se eu comprasse o Bolero de Ravel da próxima vez... haveria próxima vez? Mas novamente o carro deslizava no concreto e, infelizmente, não ia pro meu mar, mas pra minha casa que deixara pela manhã, correndo de não sei o quê.

segunda-feira, 30 de julho de 2007

Capítulo V - Os Cães do Inferno


V

A água deslizava quente e em jatos fortes. Em meus cabelos abriam-se sulcos onde caudalosos rios de água fervente corriam, trazendo-me a sensação relaxante que tanto buscava. Era Heloísa na cama - eu pensava - e talvez desejasse não encontra-la nesse dia. O vapor preso no banheiro aumentava a sensação de solidão e realidade na medida em que era necessário respirar e escutar o barulho monótono dos pingos d’água batendo no chão. Minha pele enrugada pela água denunciava que era tempo de abandonar o exílio que sempre encontrava no banheiro silencioso. Mas era preciso pensar, e a cortina de vapor adensava-se a cada minuto, aumentando o meu desejo de liberdade, de lançar-me, enfim, de jogar-me nas noites de rosas rubras e de cores brancas. Então, de súbito, peguei-me fechando o chuveiro e com a toalha felpuda aderida ao corpo, secava por completo minha sede libertária. Nesses momentos me vinha a memória lembranças da infância, quando eu, pego pela asma era obrigado a fazer sessões de nebolização, onde o vapor que entrava em minhas narinas ajudava-me a livrar o peito das amarras invisíveis que o comprimiam em mim mesmo. Mas já com a porta do banheiro aberta, uma vez dispersa a neblina, logo esquecia desse tempo onde era tão fácil libertar-se, e outra vez mirando Heloísa na cama, sentia-me constrangido por não tê-la visto na noite passada.
Esse sentimento agitou-me profundamente e, decidido a caminhar na rua, que deserta havia visto fazia minutos, vesti uma roupa o mais rápido possível, afim de não ser percebido por minha esposa. Preparado para estar comigo mesmo durante algumas horas, desci as escadas evasivamente passando pela sala e depois abrindo finalmente a porta da rua, onde eu pude sentir o doce vento gelado mais uma vez em minha face: pisei na rua. Tomara a resolução de afastar-me o mais depressa possível de minha casa, e precipitadamente avancei por sobre a calçada coalhada de folhas secas. Logo percebera que a respiração esfalfava-me e, sobretudo, obrigava-me a parar uma quadra adiante: era o suficiente. Mas não descobria porque corria da minha própria casa - fazia-o por simples impulso - e voltando a cabeça para traz pude ver o imponente casarão branco com suas árvores dependuradas e o seu eterno cano estourado. Pensei, pois, que chegara a hora de comprar os discos compactos com o Trenzinho Caipira, as Bachianas e Oratório de Noel, e que hoje não adubaria as flores do jardim, nem limparia o gramado, nem maldiria intimamente aquela caixa de correio da minha casa. Decidi que quando voltasse para casa, pegaria o carro - sem dizer para onde iria - e sairia com essas músicas no toca-discos, com o peito arfando por um heroísmo só meu, rumo ao campo marítimo dos meus sonhos, onde felizardamente encontraria a camponesa e navegaria pro resto de minha vida - no meu carro mesmo - porque em duas horas certamente regressaria para casa novamente: derrotado por um telefone celular!

Capítulo IV - Os Cães do Inferno



IV


As manhãs nasciam com um feixe do Sol no meu rosto. A cortina voando, entrecortava a explosão fria e clara do dia: o outono se fazia mais presente com a luz. As árvores nuas e o gramado coberto pelas folhas secas, decaídas na noite passada, pintavam essa manhã sedosa de marrom e cinza. Lumiere andava no telhado da casa quando, já totalmente levantado pus a cabeça fora da janela e pude ver a rua deserta. Era um Domingo e, fatalmente, fora talvez o primeiro a acordar em toda a rua, ou quem sabe em toda a cidade. Num lugar onde não se tem nada o que fazer, é preferível que se durma o máximo possível para que não se morra de tédio. Porém, por mais que tentasse retornar a cama e cerrar os olhos na escuridão das minhas pálpebras, a luz que adentrava o quarto tirava de mim a possibilidade da negridão noturna, e mesmo com os olhos fechados tinha o vermelho persistente provocado pela incisão da luz no meu rosto. De dia raramente podia sonhar: dizia tristemente. E evocando o passado pintado nos lençóis da cama, nas paredes intactas e brancas do quarto de casal que Heloísa tão habilmente havia decorado, maldizia o branco, e desejava as cores carcomidas dos meus olhos, talvez até o lúgubre cinza, ou o defectível marrom, mas, sobretudo, uma cor, ou a ausência dela, que eu tanto adorava. Observando essas coisas, o quanto não podia ver o branco sobre o branco da noite passada, buscava ávida e loucamente, nas cortinas pérolas e no chão atapetado um vestígio encardido da alva pele camponesa. Com os olhos abertos e ofuscados pelo sol, tateava, quase cego o colchão, já pronto pra levantar-me novamente. O fiz abruptamente, e a sensação levou-me à escuridão temporária, enquanto sorrateiramente caminhava descobrindo as sombras e a cortina parou de tremular. Mesmo no escuro, debaixo da cama, nos recantos perdidos do quarto não encontrava o meu branco, mas o de Heloísa somente, e o único vestígio do ontem era a própria Heloísa. Dando-me conta disso, suspirei um ar contido em meu peito, e com a mão no rosto, decidido a acordar, rumei para o banheiro com passos sôfregos e arrastados.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Capítulo III - Os Cães do Inferno



III

Era impossível não percorrer os arquivos públicos da cidade: como nascera aquela construção, quem eram os donos, fora edificada em cima do que? Essas eram perguntas que me tomavam agora. Depois de juntar e reproduzir todos os jornais que noticiaram o acontecimento que marcou toda a cidade de Alto Condado, era imprescindível tomar conhecimento do que o Estado tivera reservado como explicação para o fato - as justificativas da polícia e dos peritos da justiça sempre demonstravam mais lógica do que as mirabolantes histórias descritas pelos jornais e pela boca supersticiosa do povo. Mas tudo isso não passava de mero devaneio, talvez uma lembrança da infância longínqua onde eu brincava de desvendar “mistérios” como de onde estas formigas estão vindo?
Era necessário fugir da realidade, eu me dizia pelas manhãs- com meu peito apertado contra o cinto de segurança do carro, pigarreava essas palavras num gesto convulsivo, como um mantra. Lutava desesperadamente para que alguém escutasse meus pensamentos e pudesse, de alguma maneira, tragar-me do trabalho diário, dos jornais noturnos com seus comentários sobre esporte, das torradas frias da manhã acompanhadas das notícias da previsão do tempo e tráfego, que eu era obrigado a escutar para não pegar um engarrafamento e chegar atrasado no trabalho - (... hoje fará um belo dia de sol, e à tarde poderão se formar nuvens no céu ocasionando pancadas de chuva leve...), (...Um acidente mantém lento o tráfego na a Av. Barão de Oliveira... para quem vai para o sul, prefira pegar a Av. San Lourence...).Eu não tinha escolha: ou seguia por esse caminho, ou estaria preso... e assim se fazia com as roupas do final de semana, com os ternos de trabalho, de viagem, de tudo. Sempre havia consultores mais aptos do que você para indicarem com que roupa estaria melhor em determinado ambiente - todos nós éramos autômatos, seguíamos uma ordem preestabelecida por alguém que nem sequer eram os próprios consultores , e nem eles poderiam descobrir quem fosse.
Tinha uma enorme necessidade de fantasiar - era preciso!- Ou de tornar minha infelicidade tão gritante que pudesse pelo menos ser audível. E ao ver minha própria vida desse novo prisma, percebia, triste, que era invariavelmente um miserável: não tinha poder de escolha.
Sobrevinha, agora, a impressão suprema de que nem sequer podia chegar a ficar doente, ter uma gripe - logo que apareciam os primeiros sintomas, Heloísa obrigava-me a tomar um coquetel de remédios que, como ela própria dizia, cortava o efeito da doença. O peso imensurável da descoberta causou-me enorme espanto: era negado à mim, também, o direito à doença como ao lazer e , ao que parecia, a todas as coisas que julgava gostar.
Agora, descobria, enfim, que nada do que me levasse o prazer à alma, eu possuía - tinha uma casa perfeita, uma mulher diligente, uma filha saudável, todos os aparelhos domésticos necessários e desnecessários que se possa imaginar; um carro do ano, enfim, tudo que pudesse satisfazer os anseios de qualquer sociedade e suas exigências; mas não os meus. Então pensei que, por mim, não existiria casa, nem vizinhos, nem caixinha de correio decorada, nem um gramado lindo, nem flores bem-cuidadas para que eu tivesse de comprar esterco e adubá-las todos os domingos antes do almoço. Mas esse era o sonho de uma Heloísa grávida...
Eu sempre desejaria o mar, um barco , o vento e velejaria o resto da minha vida ao som do Trenzinho Caipira, ou das Bachianas, ou até, quem sabe, ouvindo Oratório de Noel - era este meu sonho, e não sabia porque não o estava vivendo... Nem sequer tinha essas músicas em casa. Não sonhava porque não havia música, e não tinha música pelo medo de sonhar.
E cada vez mais sentia meu peito oprimido pelo cinto de segurança do carro - faltava-me ar pelas manhãs- e só durante a noite solitária, quando levantava-me da cama e percorria a escura escada sem medo de tropeçar, é que podia sentir meu peito inflar-se com a negridão dos meus pensamentos. Era preciso sonhar - eu dizia compulsivamente nesses momentos - e deitando-me na poltrona da sala, mirando a janela embaçada pelo sereno gélido que vinha da rua, eu sonhava os dias quentes da casa branca, via a linda moça alva que passava por minha janela em todas essas manhãs escuras com o seu vestido camponês: e isso tudo só existia pra mim e era minha própria felicidade. E não durava mais que quinze minutos. Heloísa me tragava para realidade: era necessário voltar à cama. E deitado novamente ao lado de Heloísa, recordava-me do barco, e da melodia longínqua do Trenzinho Caipira, e até pensava sentir o balanço do mar e o cheiro salino que sempre me vinha às narinas nessas horas. Então fechava os olhos e, agarrado ao corpo quente de minha esposa, beijava-lhe a fronte e a boca, desejando que fosse ela, aquela mulher vestida de camponesa, e que o mesmo sorriso que tantas noites via brotar daquela face louçã, também brotasse no rosto de Heloísa. E beijava-lhe mais e com mais desejo, e a mulher à minha frente era a camponesa despida: e seus seios eram outros que não os de Heloísa. Tentava levantar-me, porquanto surpreso estava, mas as mãos brancas me puxavam de volta, e minha respiração ofegante denunciava o pavor que me dominava. Via-me enlaçado por novos braços, com um calor abrasante que jamais sentira e que não reconhecia. Então aquelas mãos me percorriam, e os olhos a minha frente eram verdes e podia vê-los no breu do quarto, tão branca era a face e tão negros os cabelos que faziam contraste. Tomado por uma paralisia, não física, mas sobretudo mental, tornava-me espectador da cena desenhada com cores brancas, dando-me conta de que aqueles seios em minhas mãos não eram os de minha esposa, mas que tinha um toque diferente e um cheiro desconhecido de rosas, talvez as mesmas rosas rubras que a camponesa carregava quando passava perante minha janela. Eu desejava-a, já, e beijando-lhe as mãos com paixão, deixava impregnar no meu corpo o cheiro dos seus cabelos longos e fartos que caídos por sobre sua espádua - e esvoaçando com o vento agridoce que penetrava na janela- ela deitava colando-os à minha face junto com sua boca úmida e entreaberta.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Capítulo II - Os Cães do Inferno



II

Com exceção de um jornal, o Tribuna Diária, todos relataram o assassinato ocorrido em Alto Condado, na ida década de 30. Uns escreveram ceticamente sobre o caso (“... o maior assassinato registrado na cidade desde a emboscada de três cobradores...”), outros davam um tom mais ameno ao acontecido (“... foi achado, hoje pela manhã, o corpo do assassino e fugitivo da polícia...”) e tinham os que deixavam impressos em suas páginas um alívio libertador (“... depois do assassinato de doze pessoas, o caso do assassino em série encontra seu fim...”).
Dentro da Biblioteca Municipal, no arquivo público, achara e consultara estes jornais durante semanas. Naquelas páginas amareladas pelo tempo, via a brutalidade dos fatos ocorridos na casa branca que tanto me atraia. Corpos mordidos por todos os lados, entulhados no porão e em estado de putrefação - alguns jornais traziam as fotos dos cadáveres empilhados e em decomposição. Às vezes, quando me lembrava dessas fotos, sentia percorrer-me um calafrio impossível de conter. Inscrições com símbolos que jamais tivera visto na vida e que, no entanto, me pareciam tão comuns e corriqueiros se achavam nas paredes internas da casa - tinha medo de penetrar tão profundamente naquilo tudo, mas era impossível negar-lhe meus sentimentos. A casa continuava à venda e ninguém se interessava pelas instalações coloniais de sua arquitetura. Talvez soubessem do acontecido, ou talvez a casa não os aceitasse se, por ventura, desejassem em algum momento, ficar com aquele velho e singular acontecimento dentro de suas vidas - diria que era verdade, para qualquer pessoa que perguntasse, que a casa expulsava os seus pretendentes, e que pulsava todas às vezes que a olhava nas manhãs sonolentas de Domingo.
Heloísa buscava me tirar desta nostalgia (que não era minha e não sabia a quem pertencia), driblava minha concentração, quase impenetrável, e com ajuda de Lumiere, me jogava novamente no hostil mundo que me era tão familiar. A cada dia, apoderava-se de mim um estado depressivo, algo que não sabia se vinha do cotidiano devastador que eu levava comigo todos os dias, ou se era por algum motivo íntimo que eu mesmo desconhecia. Talvez eu fosse mais um caso clássico que a psiquiatria, dentro dos seus ditames, classificaria como estresse familiar, ou algum outro tipo de estresse - nessa época era moda as pessoas terem esse diagnóstico. Eu diria que pelo menos noventa por cento de toda população mundial tem estresse e terá estresse até o fim dessa moda. Era chique Ter estresse e de muito mal gosto ser estressado - o que minha mulher, na sua infinita sapiência sobre todos os assuntos, certamente me faria o favor de dizer. Heloísa sempre tinha uma opinião acerca de tudo. Dava pitaco até em automobilística, coisa que nunca estudou ou sequer leu na vida. Infelizmente, Áurea havia herdado isso da mãe. No fim das contas minha cabeça repetia, naquela voz que só nós escutamos e conhecemos “nem tudo é perfeito”.
Todo esse tipo de pensamentos me deixava confuso. Por um momento pensava na casa, em outro em Heloísa ou na gata que acabara de me tirar da contemplação que gerara toda essa confusão. Minha cabeça ardia como numa cefaléia que nunca tive, mas que conhecia estranhamente, nos seus sintomas, de alguma origem de que ignorava a existência. Nesses últimos dias tinha sempre a impressão de estar pensando e vivendo com um corpo que não era meu, ou que de alguma maneira abandonaria em breve, passando a ser apenas mero observador de sua vida- me lembrava, nesses instantes, dos livros de espiritismo (que a mim pareciam sempre ter um fundo de terror, como também a Bíblia, no Apocalipse). Livros como estes me atraiam facilmente. Gostava da sensação que me traziam; sensação de medo e imunidade, de pavor e, ao mesmo tempo, de liberdade, pois sempre podia percorrer suas páginas como temor de que o descrito acontecesse, mas com a certeza de que não aconteceria. Talvez por isso livros esotéricos e bíblias, e livros de kardessistas e de magia da lua e do sol sejam tão vendidos no mundo e tornem-se best-sellers com tamanha facilidade - vai ver fazem o mesmo efeito no resto da população mundial, e isso os torne melhores, ou pelo menos faz com que aceitem sua existência efêmera neste “plano”.
Mas a verdade é que via, vez em quando, os vultos descritos nos livros de Alan Kardec - espectros ou almas penadas vagando... ou até poderiam ser almas pesadas, más, carregadas de energia negativa e presa às coisas da terra. Ria todas as vezes que pensava isso, mas no fundo sentia um calafrio, e acho que era esse calafrio que me fazia retornar ao pensamento original: a casa.

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Capítulo I - Os Cães do Inferno












*“...Tudo tomara um aspecto cinzento e lúgubre. Sobrevinha esse momento sombrio que antecede, geralmente, o nascer do Sol, a vitória definitiva da luz sobre as trevas...”

*Leão Tolstói, Ana Karenina,
página 263.


I


O céu cinzento prenunciava a manhã chuvosa que receberia o dia. Nada de brilho nem calor. Um frio cortante varria o jardim abandonado da casa branca à venda - folhas rodopiavam sem querer cair no chão de grama esturricada. Era outono, e nessa época sempre ficava com o pensamento longe. O velho chafariz, as paredes brancas - excessivamente brancas - refletiam as nuvens negras - sempre tinha medo de dizer que alguma coisa no céu fosse negra, me dava a impressão de blasfêmia. Os barulhentos pardais empoleiravam-se sem fazer o barulho matinal e corriqueiro. Um cano estourado emitia um chiado intermitente que me macerava a alma todos os dias - era também da velha casa branca. Às vezes sentia que ela falava, que todas aquelas coisas que percebia, diziam mais que apenas uma grama mal cuidada e um cano furado jorrando água. A casa parecia querer cair, matar-se. Suas paredes maculadas pelo vermelho desprendido do solo argiloso, pareciam mudar de cor por vontade própria. Parecia ter vergonha de ser branca.
Um poste de luz vacilante brilhava na rua - durante um ano inteiro observei aquela lâmpada e nunca deixara de ficar acesa. Agora já se enfraquecia aos poucos, como que partindo. Amanhã queimaria, sem dúvida.
No grande portão de ferro fundido, uma infinidade de trepadeiras se trançavam, juntando-se ao velho cadeado e impedindo a entrada de qualquer visitante inoportuno. O vento zumbia quando passava por este portão, como se adentrar aquele espaço fosse proibido aos desejos do tempo. As árvores desnudas e anciamente cravadas no chão olhavam, atônitas, a perenidade da casa - não caiam apesar de pender e deixarem à mostra algumas de suas raízes. Tinha vontade de correr quando pensava nessas raízes. Heloísa sempre chegava nessa hora, e me pregava um susto com sua presença - sempre estremecia por dentro, e, depois, era inevitável praguejar contra ela. Lumiere, a gata de pêlo branco-azulado, corria da cozinha todas as vezes que isso acontecia. Tinha esse nome em homenagem aos criadores do cinema, os irmãos Lumiere - essa era uma mania de Heloísa: fazer homenagens a gênios colocando seus nomes em animais de estimação. No outono, o vento frio começava a soprar no Alto Condado de Sant’ana - sentia-o espanar minha face. Era necessário fechar a janela de onde mirava a casa branca.
Heloísa me chamava para o dejejum - ainda ria do susto que me dera - e eu permanecia com raiva daquela brincadeira de mal gosto - nessas horas ela sempre mandava-me desfazer a carranca, e explicava que havia sido apenas uma brincadeira. Usava uma enormidade de caminhos para provar que minha raiva era uma infantilidade descartável e, eu terminava por aceitar aquelas explicações esquecendo o susto.
Eu e Heloísa havíamos casado faz 18 anos, e ela sabia me conduzir nesses momentos de raiva como ninguém. Talvez fosse por isso que a amasse até hoje, ou talvez isso seria mais um devaneio da minha cabeça - ninguém poderia permanecer casado com uma mulher só por que ela aturava os descontroles do seu marido insensível. Havia também outros motivos que desconhecia. Nesses anos todos, aprendera que o casamento era um exercício eterno de paciência - pelo menos deveria ser para todos os casais se não existisse a separação - e doação e, que, como ela tinha de aturar meu mal humor, eu tinha que aturar o bom humor dela. Dessa forma íamos passando os anos e, de vez em quando, até riamos dessa situação que nos ajudava a suportar a vida em casal. Amava-a apesar de tudo.
Os pães, a mesa posta, a tolha branca, a torradeira - tudo, absolutamente tudo - trazia-me a segurança que buscava naquela casa. O rito matinal das panelas, do chiado dos ovos estalando sobre a manteiga, a geladeira abrindo e depois a reclamação pedindo que a fechassem, Áurea vestida para ir à escola e atarantada com uma espinha que nascera inapropriadamente no nariz, justamente um dia antes de uma daquelas festas escolares capazes de definir se uma adolescência foi feliz ou não. Depois ficava observando Áurea tentando estourar sua espinha com toda coragem de que dispunha - ela estava decidida a ter uma adolescência feliz, eu me dizia. E pensava o quanto dificultamos nossa felicidade. Como é difícil para um adolescente não ter espinhas!
Enquanto a casa ia tomando o seu rumo nas mãos de Heloísa, com o café da manhã tomado, eu ia esquentando o carro na garagem e fazendo os últimos ajustes na roupa que vestia para ir ao trabalho. Antes, deixaria Áurea na escola. Possivelmente teria uma manhã de trabalho normal, sem maiores problemas. Voltaria para casa pelo almoço, acompanhado de Áurea que largava da escola nesse horário, e depois de almoçar e dar um beijo na minha esposa, regressaria, sem dúvidas, ao trabalho - que largaria somente às seis da tarde já exausto, e graças a Deus. No outro dia provavelmente a mesma odisséia, o mesmo percurso cansativo e as mesmas coisas enfadonhas com que me acostumara - apenas a velha casa branca mudava todas as manhãs. Uma hora mais branca, outra mais vermelha. Havia momentos em que conseguia ver a alteração no instante em que se operava, mas depois tinha a impressão de que as marcas que pensava novas, já existiam há anos no mesmo local. Todas as manhãs a velha casa branca mudava, e os pardais já não queriam fazer seus ninhos sob o telhado daquela construção. Somente o vento voava naquele terreno. Somente ele soprava, acompanhado pelo cano estourado, e pelos murmurinhos incompreensíveis que se escutava da rua, quando se ficava em frente ao grande portão de ferro.

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Sobre alma, amor e solidão




O medo é nosso escudo e nossa perdição, porque tememos ao que nos mata e ao que nos faz viver. Por quantas vezes vacilamos na felicidade e nos entregamos à tristeza de braços abertos preferindo a certeza da infelicidade ao contentamento incerto da paixão. Somos todos covardes. Mortos antes pelo medo que por uma ferida do amor, do que por um corte da paixão.
Mas sangramos também pela tristeza – e nisso temos culpa. Se sagraremos de qualquer modo pela tristeza ou infelicidade e também pela paixão e pelo amor, por que, ainda assim, preferimos as duas primeiras? Temos medo de sermos felizes? Ignoramos que de qualquer modo sofreremos?
O amor nos é nativo, a alma nos é nativa. A solidão somos nós que construímos. Por que então não amar? Por que ignorar a alma que se avizinha, mesmo com a distância, mesmo com o terror e o medo. Somos animais estranhos. Ansiamos a cada instante a vida, mas nos prendemos ao fim, ao comodismo da solidão – porque estar só é cômodo, apesar de triste.
Eu desejaria amar. E teria coragem se fosse acompanhado – porque a ferida de amar sozinho é de punhal mais agudo. E falo de coragem porque sair do marasmo, da comodidade para o turbilhão de felicidade é uma tarefa difícil para quem adormeceu na solidão. Vibrar com a felicidade alheia, perceber o sorriso da alma, viver com o contentamento duplo, com a alegria compartilhada é tão bom! Quem diria o contrário? Mas então porque temos tanto medo? Porque nos negamos ao que nos é nativo?
Barnave dizia: “Quanto ruído, quanta gente atarefada! Quantas idéias a respeito do futuro em uma cabeça de vinte anos! Que desatenção para com o amor!” Esse talvez seja eu próprio. Ou ainda seja o resumo de todo o mundo! Quanto medo, quanta desatenção. Que animais estranhos somos! Mas se sou desatento com o amor e com tudo o que me é nativo - por medo de me machucar ou por prudência burra – tudo tem de mudar! Eu, prudente demasiadamente, acredito apesar de tudo, que não existe prazer na prudência. A prudência e o medo são instintos de preservação da vida – Mas há vida sem amor? E nasce amor na terra sem energia da prudência? Creio que não.
Então que se pronunciem as paixões. Que corram mesmo as lâminas afiadas do amor sobre os peitos arrebatados e loucos – pois que estas espadas não são para matar, são para gravar nas almas dos amantes os nomes dos amados e amadas. São “espadas–chaves” para o reino da felicidade – e a vastidão deste reino depende unicamente da nossa coragem e do nosso amor, e podem as terras ser tão grandes que se perdem de vista! E eu pergunto: por que não um reino vasto para se governar junto? Afinal ninguém governa só. E pergunto que mau há nisso tudo para temermos? Não somos tolos se nos negamos ao amor?
Somos feitos sim de alma, amor e solidão. Mas os dois primeiros nascem conosco – o último não, mas o preferimos, apesar de dizermos o contrário.Ama, definitivamente, sem pensar antes, escreve, assim como escrevo agora, sem medir, porque nada disso comporta medida nem ponderação! Ama sem medo para conhecer o contentamento da alma e contenta a alma para conhecer o que é o amor verdadeiro!

domingo, 10 de junho de 2007

Tudo caindo aos pedaços!






Parece que a discussão sobre a reforma de templos religiosos está em voga agora. saiu no dia 07 de junho, no Jornal do Commercio, na coluna Opinião, uma discussão sobre a reforma de uma igreja católica que está se deteriorando graças à falta de dinheiro da ordem religiosa responsável, e por conta da ação sempre deficiente do Iphan - que tomba o patrimônio histórico no objetivo de preservá-lo e quase sempre o vê tombar por falta de conservação. Não faz muito tempo, informei aqui o blog sobre a lei Rouanet para restaurar templos religiosos. Tenho que asseverar que sou completamente contra a aplicação de recursos públicos em templos e igrejas sem controle, só a guiza de incentivo fiscal. Mas devo dizer que sou completamente à favor do uso do dinheiro público para restauro de igrejas católicas que tenham sido tombadas como patrimônio histórico federal. Não é novidade que a igreja católica, junto com a iniciativa portuguesa dos descobrimentos, foi fundamental para a "fundação" do Brasil. As suas igrejas, diferente das protestantes em suas várias denominações, participaram da constituição da História Nacional e são documentos vivos de um período em que Estado e Igreja eram um só aqui no Brasil. Outra questão é que quando um patrimônio particular é tombado, pela lei federal, o Estado limita, por diversos dispositivos, o uso e alteração do bem tombado, se responsabilizando, por sua parte, por manter inalteradas as características originais do imóvel tombado. Naturalmente, sem poder fazer intervenções nos imóveis, por proibição da lei, sem a atuaão do Iphan, as ordens religiosas ficam de mãos atadas, sem poder dar novo uso aos espaços, nem muito menos reformá-los por conta própria e da forma que lhes apetece. O impasse é justamente esse. O iphan não faz nada porque não tem recursos. As ordens religiosas não fazem nada por que além de não ter recursos, tem uma série de limitações legais para fazer alterações nos imóveis e assim, perdemos a cada dia, um pedaço de nossa história que cai como reboco velho no chão. A discussão não tem nada a ver com Religião. É uma questão de o país compreender que sua história está se esvaindo dia após dia, por falta de visão, consciência histórica e nacional.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Os escombros




Tivera vivido bem. Pelo menos ela acreditava nisso. Talvez por isso, hoje, essa realidade a oprimia tanto. Os móveis puídos, o chão sujo, os pratos à espera de limpeza e o rato, que envenenado pelo último arrobo de lucidez, apodrece num recanto, se furtando até do mal cheiro característico dos ratos podres, em carne liquefeita e vermes. Tudo a olha. Tudo. E no entanto o Tempo não a acorda, também não o grito da criança que chora, o ganido do cão com fome, o musgo que nasce na parede branca à sua frente. E assim, nessa gana de permanência, nada há que não o próprio sofrimento, estático, companheiro, tolerante, porque como é natural, na quietude da casa, nada do bulício da vida se pode conter.

Ela é toda escombros - corpo, casa, alma.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

Os cães do Conselheiro e Os Cães do Inferno

Aqui eu vou publicar alguns contos e trechos do livro que estou escrevendo "Os cães do Inferno". Aí abaixo segue um pequeno trecho em que o pernonagem principal - sem nome - analisa a vida dele com sua esposa, Heloísa. Em breve espero estar enviando algum conto, que postarei em partes, como é a preferência do esquartejador.

XXX

Tudo começou a mudar rápido. Ela parecia ainda tão bela - como, de fato, o era – mas alguma coisa determinantemente quebrara no quadro que pintara de Heloísa quando me apaixonara por ela há tanto tempo atrás. Não era no corpo, claro que não. Era na cabeça – como se, de repente, tivesse acontecido um estalo, o pequeno trincar no gelo do lago, que o fez perder todo o espelho frio que lhe tampava o leito. São nesses momentos – julgo eu – em que os encantos acabam e se começa a não gostar mais, ou simplesmente não se consegue mais tolerar o que antes era motivo de riso ou, no mínimo, passava desapercebido pelos seus olhos. Tudo toma solenidade. Tudo é importante e cabal e qualquer movimento fora do compasso da música – àquela bela música que tocara quando da paixão ardente – faz a tempestade desabar e o choro fluir, seja de que parte for, de quem for, por desapontamento, por tristeza mesmo de ter empregado tanto tempo com uma pessoa que você desconhecia.
O pior da constatação disso, no entanto, não é a estranheza diária, não é acordar e vê-la tão diferente do que era. Não. É a impressão medonha de ter compartilhado segredos de sua alma, que você jamais contaria a quem você não tivesse certeza absoluta de que te ama. É ver esses fragmentos seus, seus mesmo, soltos na cabeça dos outros, viajando na memória alheia. Quantas lágrimas já não foram derramadas? Quantos gritos e gemidos na noite? Foram de dor ou de prazer? A constatação de que só aquela estranha o sabe e que mais ninguém no mundo pode ter a real dimensão de cada momento passado junto à ela, é que late agora. Com ela escarnecem o mundo o seu nojo de ter, assim tão fácil, deixado sua história ruir e perder-se. Não porque tenha desaparecido – está lá para a má certeza – mas não é sua - ou é, mas poderia ser qualquer história sem fundamento, estória, que você tenha inventado no afã de massagear a auto-estima, porque só pode ser real com a ciência da estranha lá, deita ao teu lado.
Só então é que percebes que tu tens é uma história partilhada, que só quem pode dar razão a ela são os outros. Ela só pode existir com os outros e neste caso particular, só pode existir com ela. Por isso deixá-la é abdicar a minha história egoísta, porque assim a considero. Não a posso deixar porque deixaria eu próprio, por mais odioso que eu tenha sido nesses famigerados e felizes e tristes e agonizantes dias, semanas, meses, anos. Esse abandono é que me interessa. Não o da estranha que começa a acordar ao meu lado. Ela me é estranha e isso já me basta para deixá-la.
No entanto levanto da cama. Abro uma gaveta e vejo uma carta de amor e briga ao mesmo tempo, como era de costume nosso quando ainda éramos conhecidos. Lá estava escrito, no final:
“nunca esquecerei os momentos bons que você me proporcionou, o que aprendi com você, tudo. Apesar de nossas maneira diferente de pensar, te amo e superaremos tudo.
Te adoro,

Heloísa”

Talvez, esse tempo todo, o que me comovia nessas brigas, nem fosse mais a declaração de “eu te amo” ou “te adoro”. Os “eu te amo” ou “eu te adoro” são muito fáceis, se dissipam no ar, apesar de lisonjear. Há uma conta, em que tudo isso se torna zero, com o passar no tempo, como em uma soma em que você só acrescentasse o que não faz diferença. O zero como nos números é o início. É importante, mas não se pode ficar só nele se se quer alguma coisa. O que me comovia, então, nessas cartas, eram os momentos bons. E novamente vem o tempo. O tempo que só pode ser bom e só foi bom, porque era meu e dela, a conhecida paixão de outrora. Há tanta felicidade nesse tempo, que você não ousa deixá-lo para trás, não com a estranha – e assim eu permaneço aqui, parado em frente a esta cômoda, olhando para meu rosto covardemente risonho para a mulher que se acordou e que me abraça o quadril.
Quem é ela? Dormira comigo assim, sem que eu percebesse, por quanto tempo? E não saber o exato momento quando o gelo ruiu, não saber quando se tinha um lago e não mais um espelho de gelo à sua frente é que te deixa transtornado, derrotado mesmo.
E que belo espetáculo de nós mesmos vemos diariamente. Mentindo, sorrindo, gozando, comendo, conversando conversas das personagens que tomaram as vidas dos atores - mais por costume do uso que fazemos delas que por vontade das personagens de participar de uma encenação dessas. Esse, creio eu, ser o dilema de todo casal burocrático. Ou mesmo de casais que, sendo moderninhos, são burramente burocráticos, porque os modelos de seus pais são ou foram burocráticos.
Por fim, olhando para essa estranha que agora me beija a boca e toca meu sexo, concluo que quando a soma é de tempo o resultado é em cifras altas e, de fato, o que conta de verdade na hora de acabar tudo com ela é: quanto eu vou ter que esquecer para voltar a ser eu mesmo.