segunda-feira, 23 de julho de 2007

Capítulo III - Os Cães do Inferno



III

Era impossível não percorrer os arquivos públicos da cidade: como nascera aquela construção, quem eram os donos, fora edificada em cima do que? Essas eram perguntas que me tomavam agora. Depois de juntar e reproduzir todos os jornais que noticiaram o acontecimento que marcou toda a cidade de Alto Condado, era imprescindível tomar conhecimento do que o Estado tivera reservado como explicação para o fato - as justificativas da polícia e dos peritos da justiça sempre demonstravam mais lógica do que as mirabolantes histórias descritas pelos jornais e pela boca supersticiosa do povo. Mas tudo isso não passava de mero devaneio, talvez uma lembrança da infância longínqua onde eu brincava de desvendar “mistérios” como de onde estas formigas estão vindo?
Era necessário fugir da realidade, eu me dizia pelas manhãs- com meu peito apertado contra o cinto de segurança do carro, pigarreava essas palavras num gesto convulsivo, como um mantra. Lutava desesperadamente para que alguém escutasse meus pensamentos e pudesse, de alguma maneira, tragar-me do trabalho diário, dos jornais noturnos com seus comentários sobre esporte, das torradas frias da manhã acompanhadas das notícias da previsão do tempo e tráfego, que eu era obrigado a escutar para não pegar um engarrafamento e chegar atrasado no trabalho - (... hoje fará um belo dia de sol, e à tarde poderão se formar nuvens no céu ocasionando pancadas de chuva leve...), (...Um acidente mantém lento o tráfego na a Av. Barão de Oliveira... para quem vai para o sul, prefira pegar a Av. San Lourence...).Eu não tinha escolha: ou seguia por esse caminho, ou estaria preso... e assim se fazia com as roupas do final de semana, com os ternos de trabalho, de viagem, de tudo. Sempre havia consultores mais aptos do que você para indicarem com que roupa estaria melhor em determinado ambiente - todos nós éramos autômatos, seguíamos uma ordem preestabelecida por alguém que nem sequer eram os próprios consultores , e nem eles poderiam descobrir quem fosse.
Tinha uma enorme necessidade de fantasiar - era preciso!- Ou de tornar minha infelicidade tão gritante que pudesse pelo menos ser audível. E ao ver minha própria vida desse novo prisma, percebia, triste, que era invariavelmente um miserável: não tinha poder de escolha.
Sobrevinha, agora, a impressão suprema de que nem sequer podia chegar a ficar doente, ter uma gripe - logo que apareciam os primeiros sintomas, Heloísa obrigava-me a tomar um coquetel de remédios que, como ela própria dizia, cortava o efeito da doença. O peso imensurável da descoberta causou-me enorme espanto: era negado à mim, também, o direito à doença como ao lazer e , ao que parecia, a todas as coisas que julgava gostar.
Agora, descobria, enfim, que nada do que me levasse o prazer à alma, eu possuía - tinha uma casa perfeita, uma mulher diligente, uma filha saudável, todos os aparelhos domésticos necessários e desnecessários que se possa imaginar; um carro do ano, enfim, tudo que pudesse satisfazer os anseios de qualquer sociedade e suas exigências; mas não os meus. Então pensei que, por mim, não existiria casa, nem vizinhos, nem caixinha de correio decorada, nem um gramado lindo, nem flores bem-cuidadas para que eu tivesse de comprar esterco e adubá-las todos os domingos antes do almoço. Mas esse era o sonho de uma Heloísa grávida...
Eu sempre desejaria o mar, um barco , o vento e velejaria o resto da minha vida ao som do Trenzinho Caipira, ou das Bachianas, ou até, quem sabe, ouvindo Oratório de Noel - era este meu sonho, e não sabia porque não o estava vivendo... Nem sequer tinha essas músicas em casa. Não sonhava porque não havia música, e não tinha música pelo medo de sonhar.
E cada vez mais sentia meu peito oprimido pelo cinto de segurança do carro - faltava-me ar pelas manhãs- e só durante a noite solitária, quando levantava-me da cama e percorria a escura escada sem medo de tropeçar, é que podia sentir meu peito inflar-se com a negridão dos meus pensamentos. Era preciso sonhar - eu dizia compulsivamente nesses momentos - e deitando-me na poltrona da sala, mirando a janela embaçada pelo sereno gélido que vinha da rua, eu sonhava os dias quentes da casa branca, via a linda moça alva que passava por minha janela em todas essas manhãs escuras com o seu vestido camponês: e isso tudo só existia pra mim e era minha própria felicidade. E não durava mais que quinze minutos. Heloísa me tragava para realidade: era necessário voltar à cama. E deitado novamente ao lado de Heloísa, recordava-me do barco, e da melodia longínqua do Trenzinho Caipira, e até pensava sentir o balanço do mar e o cheiro salino que sempre me vinha às narinas nessas horas. Então fechava os olhos e, agarrado ao corpo quente de minha esposa, beijava-lhe a fronte e a boca, desejando que fosse ela, aquela mulher vestida de camponesa, e que o mesmo sorriso que tantas noites via brotar daquela face louçã, também brotasse no rosto de Heloísa. E beijava-lhe mais e com mais desejo, e a mulher à minha frente era a camponesa despida: e seus seios eram outros que não os de Heloísa. Tentava levantar-me, porquanto surpreso estava, mas as mãos brancas me puxavam de volta, e minha respiração ofegante denunciava o pavor que me dominava. Via-me enlaçado por novos braços, com um calor abrasante que jamais sentira e que não reconhecia. Então aquelas mãos me percorriam, e os olhos a minha frente eram verdes e podia vê-los no breu do quarto, tão branca era a face e tão negros os cabelos que faziam contraste. Tomado por uma paralisia, não física, mas sobretudo mental, tornava-me espectador da cena desenhada com cores brancas, dando-me conta de que aqueles seios em minhas mãos não eram os de minha esposa, mas que tinha um toque diferente e um cheiro desconhecido de rosas, talvez as mesmas rosas rubras que a camponesa carregava quando passava perante minha janela. Eu desejava-a, já, e beijando-lhe as mãos com paixão, deixava impregnar no meu corpo o cheiro dos seus cabelos longos e fartos que caídos por sobre sua espádua - e esvoaçando com o vento agridoce que penetrava na janela- ela deitava colando-os à minha face junto com sua boca úmida e entreaberta.

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