quarta-feira, 18 de julho de 2007

Capítulo II - Os Cães do Inferno



II

Com exceção de um jornal, o Tribuna Diária, todos relataram o assassinato ocorrido em Alto Condado, na ida década de 30. Uns escreveram ceticamente sobre o caso (“... o maior assassinato registrado na cidade desde a emboscada de três cobradores...”), outros davam um tom mais ameno ao acontecido (“... foi achado, hoje pela manhã, o corpo do assassino e fugitivo da polícia...”) e tinham os que deixavam impressos em suas páginas um alívio libertador (“... depois do assassinato de doze pessoas, o caso do assassino em série encontra seu fim...”).
Dentro da Biblioteca Municipal, no arquivo público, achara e consultara estes jornais durante semanas. Naquelas páginas amareladas pelo tempo, via a brutalidade dos fatos ocorridos na casa branca que tanto me atraia. Corpos mordidos por todos os lados, entulhados no porão e em estado de putrefação - alguns jornais traziam as fotos dos cadáveres empilhados e em decomposição. Às vezes, quando me lembrava dessas fotos, sentia percorrer-me um calafrio impossível de conter. Inscrições com símbolos que jamais tivera visto na vida e que, no entanto, me pareciam tão comuns e corriqueiros se achavam nas paredes internas da casa - tinha medo de penetrar tão profundamente naquilo tudo, mas era impossível negar-lhe meus sentimentos. A casa continuava à venda e ninguém se interessava pelas instalações coloniais de sua arquitetura. Talvez soubessem do acontecido, ou talvez a casa não os aceitasse se, por ventura, desejassem em algum momento, ficar com aquele velho e singular acontecimento dentro de suas vidas - diria que era verdade, para qualquer pessoa que perguntasse, que a casa expulsava os seus pretendentes, e que pulsava todas às vezes que a olhava nas manhãs sonolentas de Domingo.
Heloísa buscava me tirar desta nostalgia (que não era minha e não sabia a quem pertencia), driblava minha concentração, quase impenetrável, e com ajuda de Lumiere, me jogava novamente no hostil mundo que me era tão familiar. A cada dia, apoderava-se de mim um estado depressivo, algo que não sabia se vinha do cotidiano devastador que eu levava comigo todos os dias, ou se era por algum motivo íntimo que eu mesmo desconhecia. Talvez eu fosse mais um caso clássico que a psiquiatria, dentro dos seus ditames, classificaria como estresse familiar, ou algum outro tipo de estresse - nessa época era moda as pessoas terem esse diagnóstico. Eu diria que pelo menos noventa por cento de toda população mundial tem estresse e terá estresse até o fim dessa moda. Era chique Ter estresse e de muito mal gosto ser estressado - o que minha mulher, na sua infinita sapiência sobre todos os assuntos, certamente me faria o favor de dizer. Heloísa sempre tinha uma opinião acerca de tudo. Dava pitaco até em automobilística, coisa que nunca estudou ou sequer leu na vida. Infelizmente, Áurea havia herdado isso da mãe. No fim das contas minha cabeça repetia, naquela voz que só nós escutamos e conhecemos “nem tudo é perfeito”.
Todo esse tipo de pensamentos me deixava confuso. Por um momento pensava na casa, em outro em Heloísa ou na gata que acabara de me tirar da contemplação que gerara toda essa confusão. Minha cabeça ardia como numa cefaléia que nunca tive, mas que conhecia estranhamente, nos seus sintomas, de alguma origem de que ignorava a existência. Nesses últimos dias tinha sempre a impressão de estar pensando e vivendo com um corpo que não era meu, ou que de alguma maneira abandonaria em breve, passando a ser apenas mero observador de sua vida- me lembrava, nesses instantes, dos livros de espiritismo (que a mim pareciam sempre ter um fundo de terror, como também a Bíblia, no Apocalipse). Livros como estes me atraiam facilmente. Gostava da sensação que me traziam; sensação de medo e imunidade, de pavor e, ao mesmo tempo, de liberdade, pois sempre podia percorrer suas páginas como temor de que o descrito acontecesse, mas com a certeza de que não aconteceria. Talvez por isso livros esotéricos e bíblias, e livros de kardessistas e de magia da lua e do sol sejam tão vendidos no mundo e tornem-se best-sellers com tamanha facilidade - vai ver fazem o mesmo efeito no resto da população mundial, e isso os torne melhores, ou pelo menos faz com que aceitem sua existência efêmera neste “plano”.
Mas a verdade é que via, vez em quando, os vultos descritos nos livros de Alan Kardec - espectros ou almas penadas vagando... ou até poderiam ser almas pesadas, más, carregadas de energia negativa e presa às coisas da terra. Ria todas as vezes que pensava isso, mas no fundo sentia um calafrio, e acho que era esse calafrio que me fazia retornar ao pensamento original: a casa.

Nenhum comentário: