segunda-feira, 30 de julho de 2007

Capítulo V - Os Cães do Inferno


V

A água deslizava quente e em jatos fortes. Em meus cabelos abriam-se sulcos onde caudalosos rios de água fervente corriam, trazendo-me a sensação relaxante que tanto buscava. Era Heloísa na cama - eu pensava - e talvez desejasse não encontra-la nesse dia. O vapor preso no banheiro aumentava a sensação de solidão e realidade na medida em que era necessário respirar e escutar o barulho monótono dos pingos d’água batendo no chão. Minha pele enrugada pela água denunciava que era tempo de abandonar o exílio que sempre encontrava no banheiro silencioso. Mas era preciso pensar, e a cortina de vapor adensava-se a cada minuto, aumentando o meu desejo de liberdade, de lançar-me, enfim, de jogar-me nas noites de rosas rubras e de cores brancas. Então, de súbito, peguei-me fechando o chuveiro e com a toalha felpuda aderida ao corpo, secava por completo minha sede libertária. Nesses momentos me vinha a memória lembranças da infância, quando eu, pego pela asma era obrigado a fazer sessões de nebolização, onde o vapor que entrava em minhas narinas ajudava-me a livrar o peito das amarras invisíveis que o comprimiam em mim mesmo. Mas já com a porta do banheiro aberta, uma vez dispersa a neblina, logo esquecia desse tempo onde era tão fácil libertar-se, e outra vez mirando Heloísa na cama, sentia-me constrangido por não tê-la visto na noite passada.
Esse sentimento agitou-me profundamente e, decidido a caminhar na rua, que deserta havia visto fazia minutos, vesti uma roupa o mais rápido possível, afim de não ser percebido por minha esposa. Preparado para estar comigo mesmo durante algumas horas, desci as escadas evasivamente passando pela sala e depois abrindo finalmente a porta da rua, onde eu pude sentir o doce vento gelado mais uma vez em minha face: pisei na rua. Tomara a resolução de afastar-me o mais depressa possível de minha casa, e precipitadamente avancei por sobre a calçada coalhada de folhas secas. Logo percebera que a respiração esfalfava-me e, sobretudo, obrigava-me a parar uma quadra adiante: era o suficiente. Mas não descobria porque corria da minha própria casa - fazia-o por simples impulso - e voltando a cabeça para traz pude ver o imponente casarão branco com suas árvores dependuradas e o seu eterno cano estourado. Pensei, pois, que chegara a hora de comprar os discos compactos com o Trenzinho Caipira, as Bachianas e Oratório de Noel, e que hoje não adubaria as flores do jardim, nem limparia o gramado, nem maldiria intimamente aquela caixa de correio da minha casa. Decidi que quando voltasse para casa, pegaria o carro - sem dizer para onde iria - e sairia com essas músicas no toca-discos, com o peito arfando por um heroísmo só meu, rumo ao campo marítimo dos meus sonhos, onde felizardamente encontraria a camponesa e navegaria pro resto de minha vida - no meu carro mesmo - porque em duas horas certamente regressaria para casa novamente: derrotado por um telefone celular!

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