sexta-feira, 6 de julho de 2007

Capítulo I - Os Cães do Inferno












*“...Tudo tomara um aspecto cinzento e lúgubre. Sobrevinha esse momento sombrio que antecede, geralmente, o nascer do Sol, a vitória definitiva da luz sobre as trevas...”

*Leão Tolstói, Ana Karenina,
página 263.


I


O céu cinzento prenunciava a manhã chuvosa que receberia o dia. Nada de brilho nem calor. Um frio cortante varria o jardim abandonado da casa branca à venda - folhas rodopiavam sem querer cair no chão de grama esturricada. Era outono, e nessa época sempre ficava com o pensamento longe. O velho chafariz, as paredes brancas - excessivamente brancas - refletiam as nuvens negras - sempre tinha medo de dizer que alguma coisa no céu fosse negra, me dava a impressão de blasfêmia. Os barulhentos pardais empoleiravam-se sem fazer o barulho matinal e corriqueiro. Um cano estourado emitia um chiado intermitente que me macerava a alma todos os dias - era também da velha casa branca. Às vezes sentia que ela falava, que todas aquelas coisas que percebia, diziam mais que apenas uma grama mal cuidada e um cano furado jorrando água. A casa parecia querer cair, matar-se. Suas paredes maculadas pelo vermelho desprendido do solo argiloso, pareciam mudar de cor por vontade própria. Parecia ter vergonha de ser branca.
Um poste de luz vacilante brilhava na rua - durante um ano inteiro observei aquela lâmpada e nunca deixara de ficar acesa. Agora já se enfraquecia aos poucos, como que partindo. Amanhã queimaria, sem dúvida.
No grande portão de ferro fundido, uma infinidade de trepadeiras se trançavam, juntando-se ao velho cadeado e impedindo a entrada de qualquer visitante inoportuno. O vento zumbia quando passava por este portão, como se adentrar aquele espaço fosse proibido aos desejos do tempo. As árvores desnudas e anciamente cravadas no chão olhavam, atônitas, a perenidade da casa - não caiam apesar de pender e deixarem à mostra algumas de suas raízes. Tinha vontade de correr quando pensava nessas raízes. Heloísa sempre chegava nessa hora, e me pregava um susto com sua presença - sempre estremecia por dentro, e, depois, era inevitável praguejar contra ela. Lumiere, a gata de pêlo branco-azulado, corria da cozinha todas as vezes que isso acontecia. Tinha esse nome em homenagem aos criadores do cinema, os irmãos Lumiere - essa era uma mania de Heloísa: fazer homenagens a gênios colocando seus nomes em animais de estimação. No outono, o vento frio começava a soprar no Alto Condado de Sant’ana - sentia-o espanar minha face. Era necessário fechar a janela de onde mirava a casa branca.
Heloísa me chamava para o dejejum - ainda ria do susto que me dera - e eu permanecia com raiva daquela brincadeira de mal gosto - nessas horas ela sempre mandava-me desfazer a carranca, e explicava que havia sido apenas uma brincadeira. Usava uma enormidade de caminhos para provar que minha raiva era uma infantilidade descartável e, eu terminava por aceitar aquelas explicações esquecendo o susto.
Eu e Heloísa havíamos casado faz 18 anos, e ela sabia me conduzir nesses momentos de raiva como ninguém. Talvez fosse por isso que a amasse até hoje, ou talvez isso seria mais um devaneio da minha cabeça - ninguém poderia permanecer casado com uma mulher só por que ela aturava os descontroles do seu marido insensível. Havia também outros motivos que desconhecia. Nesses anos todos, aprendera que o casamento era um exercício eterno de paciência - pelo menos deveria ser para todos os casais se não existisse a separação - e doação e, que, como ela tinha de aturar meu mal humor, eu tinha que aturar o bom humor dela. Dessa forma íamos passando os anos e, de vez em quando, até riamos dessa situação que nos ajudava a suportar a vida em casal. Amava-a apesar de tudo.
Os pães, a mesa posta, a tolha branca, a torradeira - tudo, absolutamente tudo - trazia-me a segurança que buscava naquela casa. O rito matinal das panelas, do chiado dos ovos estalando sobre a manteiga, a geladeira abrindo e depois a reclamação pedindo que a fechassem, Áurea vestida para ir à escola e atarantada com uma espinha que nascera inapropriadamente no nariz, justamente um dia antes de uma daquelas festas escolares capazes de definir se uma adolescência foi feliz ou não. Depois ficava observando Áurea tentando estourar sua espinha com toda coragem de que dispunha - ela estava decidida a ter uma adolescência feliz, eu me dizia. E pensava o quanto dificultamos nossa felicidade. Como é difícil para um adolescente não ter espinhas!
Enquanto a casa ia tomando o seu rumo nas mãos de Heloísa, com o café da manhã tomado, eu ia esquentando o carro na garagem e fazendo os últimos ajustes na roupa que vestia para ir ao trabalho. Antes, deixaria Áurea na escola. Possivelmente teria uma manhã de trabalho normal, sem maiores problemas. Voltaria para casa pelo almoço, acompanhado de Áurea que largava da escola nesse horário, e depois de almoçar e dar um beijo na minha esposa, regressaria, sem dúvidas, ao trabalho - que largaria somente às seis da tarde já exausto, e graças a Deus. No outro dia provavelmente a mesma odisséia, o mesmo percurso cansativo e as mesmas coisas enfadonhas com que me acostumara - apenas a velha casa branca mudava todas as manhãs. Uma hora mais branca, outra mais vermelha. Havia momentos em que conseguia ver a alteração no instante em que se operava, mas depois tinha a impressão de que as marcas que pensava novas, já existiam há anos no mesmo local. Todas as manhãs a velha casa branca mudava, e os pardais já não queriam fazer seus ninhos sob o telhado daquela construção. Somente o vento voava naquele terreno. Somente ele soprava, acompanhado pelo cano estourado, e pelos murmurinhos incompreensíveis que se escutava da rua, quando se ficava em frente ao grande portão de ferro.

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