quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Os Cães do Inferno - Capítulo XVI


Dona Milú. A velha dona Milú. O que escondia? Por que pagava tão caro por seus segredos? Teria filhos, irmãs, parentes? Ninguém. Por que a bíblia, a voz tremula e chorosa, as roupas castas, o sorriso forçado, as mãos negativas dentro do vestido de estampa apagada?
A carne puída, o rosto descarnado, os olhos sulcados, os cabelos desgrenhados - brancos como uma luz ofuscante e perdida - pernalta e seca, com unhas duras feito cascos, amareladas - tingidas pelo tempo e fungo. A sua boca era algo como impotente na verdade: apenas as mentiras tinham voz, a ilusão - não mentira para mim, ou para qualquer um outro. Antes de tudo mentira e ilusão para ela mesma. Seus dentes longelíneos, quase sem gengivas que os quisessem tocar. Na sua pele morava uma sensação de secura e miséria - via agora um monstro. Talvez não a mesma Dona Milú que estivera no meu quarto quando eu estava doente, não. Mas com que certeza eu dizia isso? Como eu poderia precisar sobre os seus olhos ou sobre a sua pele?
Dona Milú era um monstro, eu agora pensava - pela forma e pelo pensamento. Pela forma porque seu tempo se fora e tudo nela permanecia variadamente: a tristeza, a miséria, as árvores sem folhas do outono. E pelo pensamento, porque ninguém poderia remontar ao exato momento em que ela abandonou a sinceridade com ela própria.
Assim via Dona Milú. E era como se ela soubesse que a via assim - com tanta crueldade ou até com simples realidade. E era como se ela apreciasse essa cumplicidade, esse terror.
Aquelas caminhadas matinais que sempre observara da minha janela, mesmo nos dias já frios dessa estação tão tenebrosa e aconchegante, não me davam a realidade dela, não me mostravam o que mostrava aos outros, ao pastor da igreja, ao jornaleiro que cruzava todos os dias com ela e, às vezes, parava para olhar durante dois minutos a passagem de Dona Milú pela calçada cinzenta daquela rua. Impelia-me justamente esse olhar do jornaleiro, esses infindáveis dois minutos que ele – e, sobretudo eu – passava observando os passos que, nesses momentos se desenrolavam mais lentos ainda do que de costume, como se lêssemos dona Milú nesse intervalo minúsculo de tempo, nessa vacilação entre o passar e o espaço, entre a permanência e a mudança. Empertigava-me também esse olhar do jornaleiro: por que olhava dona Milú com olhos tão parecidos com os meus, quase com o mesmo interesse que me lançava a mirar aquela figura a que ninguém, além dele e eu, passaria mais de dois segundos observando? Qual o segredo de dona Milú. Será que esse jornaleiro sentiria falta dela se, em algum dia dona Milú desaparecesse ou, por algum motivo, deixasse de passar por aquela rua, mudasse de religião e não fosse mais à igreja pela manhã? Mas afinal de contas: o que me levava a fazer essas perguntas, o que me prendia tão visceralmente a essa preocupação descabida? Certamente olhava dona Milú porque talvez não tivera visto antes uma mulher tão estranha, tão mentirosamente devotada – eu sabia, tinha quase certeza, uma certeza daquelas que se tem quando se é eminente uma descoberta científica ou a traição de sua mulher, a gravidez proibida da sua amante.
Ela mentia! Mentia para todos, mentia para mim e talvez tivesse mentido para seu Germino também. Talvez o jornaleiro fosse um filho perdido ou, quem sabe, ela tivera negado ao bom seu Germino um filho, mentindo-lhe que era estéril enquanto, com outros homens entornara toda a sua juventude, todo seu fulgor, seus braços, seus seios, sua cintura em silhueta fina, suas pernas delineadas... Agora o que era? Tudo vai embora. Tudo vai. Tudo. A juventude fora, a beleza fora, seu Germino fora.
Essas cogitações estranhas, talvez tão estranhas e descabidas, me vinham todas as vezes em que via o jornaleiro a observar. E vinham com tanta realidade – ela premendo unhas contras costas, suspiros contra rostos, lábios contra lábios: carne contra carne. O corpo derramado em êxtase juvenil, no calor dos lençóis alvos e sedosos de outro homem que não o seu, naqueles anos passados do início do seu casamento. Aturdia-me, sobretudo a imagem do corpo nu dormindo calmo e liberto na cama, os olhos cerrados nas pálpebras, a cabeça do amante displicente e amorosamente largada sobre o tenro ventre – tão lindo, tão atraente, tão cheio de volúpia incontida! Um beijo inguinal e depois um suspiro e um despertar alegre. Por quanto tempo dona Milú esperara por aquele dia? Por quantas tardes pensara naquele homem e nos seus lábios e nas suas mãos e na maneira como ele lhe apertava carinhosamente na cama, contra seu peito, desejando-lhe mais do que a qualquer outra, mais do que até a sua própria mulher. Por quanto tempo passara esperando essa explosão, a ansiedade de um desconhecido, as suas mãos puxando os cabelos e a boca beijando o pescoço?
E seu Germino também passara. Tão trabalhador, tão calado, bem tratado, comida na mesa, roupa limpa, casa em ordem. Tão solícito, tão amável e delicado, tão quieto. Precisando tanto de um filho, talvez. Algo que lhe desse dinâmica, aborrecimentos, um pouco de preocupação que não as do trabalho. Mas em casa era tudo ótimo. Não lhe faltava nada. Talvez uma mulher. Talvez. O que lhe doía era não ter um filho. Isso lhe tirava o viver: uma mulher estéril! Tão linda, tão cuidadosa. Mas estéril!? Não lhe podia fazer mal. Ia vivendo ela, e ele do jeito que podia, se conformando com a falta de filho, com essa mulher que era quase uma santa de tão boa.
À dona Milú doía ter um homem amargurado, sempre querendo um filho. Já não tinha tudo? Então vivia e vivia e vivia. Por quanto tempo se dera ao seu marido com ímpeto, com força, com frêmito? Por quantas vezes ele a amara faminto, com a selvageria de uma matilha, com o desejo dos condenados à morte, na sua última noite? Depois que dona Milú disse que não podia ter filhos, virou um amor sem pretensão, sem vontade, sem objetivo. Sem filho... Dona Milú de tudo lhe dera, só se negava a dar um filho. Isso não! Tinha uma vida feliz, uma boa casa, um homem que a amava com desejo, porque um filho? Para quê um filho?
Quando seu Germino se negou a amá-la como em outrora fizera, ela se negou a deixar de ter uma vida feliz. Continuou com a casa, com um homem tão quieto e bom com o qual havia se casado, continuou mantendo-o com carinho, devoção e prontidão. Fez-lhe de tudo como antes fizera, do mesmo jeito. Nada mudara em relação ao seu trato com ele – ela sempre a mesma, só que sem filhos. Até que um dia o cano da cozinha entupiu, transbordando água por todo o balcão... teve que chamar o encanador. Ele lá deitado embaixo do balcão, metade dentro da escuridão, metade solta na luz da cozinha, no chão daquela peça em que passava quase toda a manhã.
Ele tão forte, com uma chave de cano na mão, um vozeirão rouco quando falava que teria de trocar o cano. Dona Milú com vinte e quatro anos, delgada, vestido apertado na cintura, decote no busto de alabastro intumescido pelo caimento da roupa. Ela de pé ao lado e ele deitado no chão, quando tirou a cabeça da escuridão pra se levantar, ninguém sabe se de caso pensado ou se por descuido, dona Milú deixou-se ver e o encanador ficou a olhar satisfeito. O que se sucedeu, em vez de um mal estar de ambas as partes, foi um enrubescer sutil na tez sensível de dona Milú, que tanto podia ser de excitação quanto de vergonha, e um sorriso no canto da boca do encanador que via naquilo um vacilar, uma incerteza na decisão da mulher.
Depois ela saiu para pegar o dinheiro do pagamento do homem – e pediu que ele a acompanhasse. Ela entrou no quarto, abriu uma gavetinha na cômoda e perguntou quanto era o serviço. O homem disse o preço e ela chegou-se perto dele para dar a quantia. Ele estava na porta, não ousara entrar no quarto. Ela queria passar, sair dali, ou talvez aquilo fosse apenas um pretexto. Apertou-se entre o encanador e a porta, roçando o corpo no corpo dele, pressionando seus seios contra o peito dele e levantando o pescoço, depois de respirar o cheiro do encanador e deixar que ele fizesse o mesmo com ela, lançando um suspiro pela boca aberta e trêmula. Tinha medo é verdade. Mas o que importava?
Então mãos fortes apertaram seus braços e o homem só foi capaz de dizer na sua voz malandra em tom mendigante: moça... a senhora não devia fazer isso que tá fazendo comigo... E calou-se. Não falou mais nada, porque ela o beijara, e ele também a beijara. E ele com as mãos nos braços dela enlaçaram-na num abraço ousado, e depois percorreram as fitas do vestido até desenlaçar toda a roupa e deixa-la cair no chão. Ela medrosa, talvez até arrependida de não ter feito aquilo antes, de ter continuado a viver, hesitava em tirar-lhe a camisa e a calça. Mas depois que se percebera nua, buscou com mãos geladas a camisa e a calça dele e desabotoou ambas, enquanto ele, passivo, observava aquela mulher tão linda que o despia vagarosamente.
Ele beijou-lhe o ventre, as pernas, os seios - e ela tremia. Tremia o êxtase que não sentia há muito. E arfava, com as mãos terrificadas, até que ele afagou-lhe a face e as costas e deitou-lhe na cama – mesma cama onde dormia ela e o marido, mesma cama onde ela tivera dito não poder ter filhos, mesma cama onde seu marido a tivera amado com desejo e que agora não amava mais. E ela quedou-se na cama, olhava o teto, o rosto do homem que a tomava naquele instante - adorava-o, adorava-o e só fez uma exigência: que ele a deixasse chamar-lhe de Germino.
O homem já nem se importava com isso. Aliás, sentia até mais prazer. Não dera resposta alguma. Não precisava, não queria. Afinal de contas se ele não aceitasse ela cederia? Que importância teria aquilo? Beijo-lhe a barriga e desceu ainda mais. Não responderia – e ela deu um suspiro segurando a cabeça dele e implorando que a beijasse mais e com mais força. E então o pressionou contra ela, tão vermelha e quente, tão úmida e pedinte – queria-o todo, queria-o, enfim, nela própria como um pedaço seu, quente, líquido, movediço, como seu marido fizera, como este novo homem deveria fazer.
Ela então o beijou – no peito, na barriga e no sexo e tanto até ele estremecer e pedir-lhe em olhares tão falantes que o tomasse com os braços, com as mãos, com os lábios... E ela com as pernas o enlaçou e lhe cravou nas costas as unhas, enquanto com um uivo deslizava por ele, livre, solta, delirante.
Ele tão cadenciado, rítmico e flamejante recuava e se lançava e o fazia de novo e mais uma vez, de rosto nos seios, de mãos que suspendiam e largavam e que premiam e acariciavam e erguiam e soltavam mais uma vez, contra a parede, no ar, ela presa a ele e ele preso a ela, em meio aos ares e os sopros e os sussurros, os urros, o êxtase, as línguas transbordando em beijo, os desejos entornando em quadris, ombros, pernas – pernas prisão e movimento. E aquele eclipse - sol fechando-se em lua - suor e gosto, sal e olhos e rufar de peitos e gritos agudos e baixos, no segredar do inaudito, no falar das mãos, na linguagem das peles úmidas se tocando, do calor próximo, dos vapores do clímax, daquela mulher devorando aquele homem, forçando seu sexo contra o sexo dele – daquele homem invadindo aquela mulher, investindo-lhe virilidade, carinho e fúria. E o nome repetia-se forte: Germino, Germino, Germino! – a cada estremecimento, a cada toque da língua no mamilo enrijecido, a cada arquejar de suas costas e jogo do quadril contra aquele corpo, sobre aquele homem em galope incendiado e cintilante.
Então ela sentiu um calor no ventre, o verter de luz, o suspiro libertador do seu macho sob seu corpo suado, no retesar de músculos, na ondulação do seu órgão, no eriçar dos pêlos, no aperto sufocante das suas mãos envolta do seu quadril frenético, até que ela explodiu, viva, pulsante, azul.
E rolou com o seu amante sobre a cama, a fim de sair de cima dele, a fim de passar-lhe a mão no rosto, de o olhar mais brandamente uma vez e de, quem sabe, dormir com a cabeça sobre seu peito, escutando ainda seu coração acelerado nas batidas que ela provocara, na rapidez tépida e vermelha que só ela poderia ter gerado naquele dia, naquela cama. E até ficou por cinco minutos assim, perdendo-se naquela felicidade descomprometida, naquele esquecimento tão renovador.
Mas era casada. Vestiu-se se despedindo e jurando mentalmente que jamais um cano se romperia novamente em sua casa, que nem se quer uma mangueira se furaria no seu jardim. O homem logo compreendera e não fez caso. Levantou-se. Vermelha – não se sabe se de vergonha ou se do cansaço – mas, sobretudo digna como sempre, vestiu o seu homem e o levou a porta. Ele não dissera nada – queria apenas comer e depois dormir: pena que não seria naquela cama, pensava. A única coisa que fez foi pôr o pagamento do serviço de encanação no bolso da calça e sair sem olhar para trás, em passo lento e preguiçoso, como quem abandona uma boa oportunidade de descanso após o almoço.

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