terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Sobre raposas e pingüins



Anita tem sobre a sua geladeira um pingüim. Nada que não fosse tão corriqueiro, nada que fosse tão peculiar que precisasse ser lembrado por alguém que a tivesse, algum dia, visitado ou, ainda, dormido em sua cama e preparado um café-da-manhã romântico servido no quarto, ao amanhecer. Sua cozinha tinha de tudo o natural e igual a quase todas as cozinhas. Não fosse - passou pela cabeça do homem que dormira a última noite na casa de Anita e que havia preparado o café-da-manhã romântico desta semana – ter observado que se tratava de um pingüim imperial.


Ricardo tinha uma raposa colorida impressa em um cartaz de 60 cm X 40 cm, colada na parede do seu quarto. Ele devia ter 18 anos e a raposa estava esplêndida em meio a um campo de trigo que balançava sob o efeito do vento morno que certamente soprava no final da primavera ou no início do verão. Gostava de olhá-la ternamente enquanto beijava qualquer mulher que ele trouxesse ao quarto – e nenhuma a amava, porque acreditavam que um homem que beijava de olhos abertos não podia amar.


Um dia, na festa mais improvável, no dia mais derradeiro do ano, com as roupas mais inadequadas, Ricardo e Anita se encontraram. Um sentia frio a outra sentia calor. Pareciam estar ambos em outro mundo – pareciam mesmo nunca dever ter se encontrado. Mas mesmo assim conversaram, enquanto, aos poucos, o mundo ia girando vagarosamente para alcançar algum canal especial, como uma antiga televisão de seletores, que faz barulho para sintonizar algo na tela.


Anita, com o seu pingüim imperial, estava no inverno e, Ricardo, sempre com sua raposa, estava no verão. Mas o mundo girava devagar para sintonizá-los em uma primavera ou em um outono - e os colocou um dia, em uma estação em que puderam, pela primeira vez, sentir a mesma coisa: estavam ineditamente confortáveis e amáveis e sorridentes. Gostaram de tantas coisas em comum, riram de tantas situações similares, abraçaram-se várias vezes e beijaram-se inúmeras e tantas outras que Ricardo a convidou para conhecer sua casa.


Lá, pela primeira vez, Ricardo não ficou de frente para a raposa antes de beijar uma mulher – e Anita agora tomada pelos beijos, com os olhos de Ricardo fechados, se apaixonava enquanto no cartaz a raposa corria pelo campo de trigo cor de ouro e rodopiavam os ventos diversamente sobre a superfície rica daquelas paragens. O sol brilhava ameno às quatro horas da tarde, talvez a hora mais agradável em qualquer lugar do mundo e também no cartaz. E estava tão feliz que quando estacou, a raposa contou a Anita, ao pé do ouvido, segredos que só havia contado a um pequeno menino de cabelos loiros. E Anita amou Ricardo.


Depois, ainda naquela estação indefinida do ano, Anita convidou Ricardo para ir a sua casa. Sentiam-se maravilhosos e olhavam-se e se admiravam sob a luz tênue do sol. Mas Anita ainda queria dizer algo antes da vacilação do clima, antes que pudesse o mundo girar e alcançar outros tempos de frio e de calor que os pudesse separar. Então ela o amou a noite inteira – mas não como os animais: beijando-o com devoção e sem malícia, acariciou a sua face com as pontas dos dedos e depois com as costas das mãos, como quem não quisesse afastar o toque nem pelo curto espaço do recomeço de um carinho. E o tomou nos braços – e quando ele quis falar, o calou, olhando nos seus olhos mais profundamente e mais, enquanto naquele kitnet minúsculo também os observava o pingüim imperial de cima da geladeira. Anita nunca tivera amado fora do quarto.


Ricardo sequer havia amado.


E olhando no espelho indefinido dos olhos dela, ele pode saber o que esperava o pingüim sob o açoite do vento gelado. Ele não se movia um milímetro enquanto sopravam as tempestades de gelo, não vacilava diante do nada, não olhava para o caminho que havia percorrido para chegar até ali para se pôr à prova da ausência. E então, naquele quadro branco, um ponto que se aproximava o fez voltar-se contra o vento - e ao longe não era mais que algo indivisível da sombra ou do preto. Mas então ele sabia. E nesse dia Ricardo amou.

Um comentário:

Artmonta disse...

Gostei! Super imagético... Eduardo Souza