sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Os Cães do Inferno - Capítulo XVIII


Na praça, um abolicionista aponta para além da visão. Prostitutas em fim de carreira fazem ponto e precisam almoçar. Ao lado, deus tenta-lhes salvar a alma. Elas escutam, são tementes. O abolicionista escuta, é uma estátua – e um homem satisfeito grita num microfone: Aleluia! E eu me pergunto quem tivera sido convertido na praça, enquanto alguém, feliz, vencia uma nesga de fome.
Diante da pregação o abolicionista parecia imóvel. Os ditos do homem, incansável ao microfone, não queriam, na verdade, salvar ninguém. Ele próprio não queria salvar ninguém. Queria mesmo ecoar, como os pequenos homens não conseguem fazer, queria, se pudesse, permanecer no ar, com a voz vagando – e ainda mais do que mesmo querer, desejava que a sua voz fosse tão forte e potente, que não precisasse de microfone e caixa de som para que navegasse no tempo. Ele desejava ficar. E nessa gana de permanência também se movia o abolicionista, com os escravos aos seus pés, com grilhões dependurados dos braços, clamando por suas liberdades. Queria dizer algo, como não dizem as estátuas nem os abolicionistas, queria que os negros aos seus pés o deixasse em paz. Ela própria, estátua abolicionista, não estava já tão branca para libertar negros – e estava cansada disso, do seu discurso, da sua posição apontando para um lugar que não conhecia. Tinha em mente, de certo, que seu tempo era outro, de antes, ainda, do tempo em que tivera sido talhada – de quando era só rocha. Ela não queria ecoar: antes queria mesmo seu musgo, ou se houvesse jeito de não se tornar estátua, que pelo menos fosse abstrata, uma estátua pública sem tanto significado, com os seus pombos. Pensando como abolicionista que se transformara, de identidade incógnita para a pedra - ela, como o crente, tinha seu próprio discurso e, ainda, é verdade, desconfiava da existência de novos escravos modernos que tinham que ser extirpados. Mas não podia falar – e mesmo que pudesse, sabia que existem coisas que importavam pouco para o mundo.
As prostitutas mantinham-se sentadas nos bancos atulhados de miséria e sujeira. Riam banguelas umas para as outras, com seus cabelos em penteados dos velhos tempos em que eram contratadas por estudantes ginasiais na flor da idade – coisa de trinta anos passados. Roupas coladas, olhares lânguidos à luz do dia, nas veias movimentadas do tráfego pesado que corria na avenida lateral. Eram a Criação. Quantos olhares do povo que não as compreendia podiam suportar numa jornada de trabalho? Trocavam a noite pela luz - era mais seguro, parecia – e suas pouses eram as mesmas de antigamente. Suas esperas é que mudaram. Em fim de carreira, não de trabalho, atraíam para si homens de mesma ilusão – em tudo similares e sujos e reais. Neles e nelas o bulício da carne ainda comia a alma: nas mulheres com mais dignidade, nos homens - fedendo à álcool e a família que descansava em casa, à moralidade e ao prazer famélico da boca desnuda de suas parceiras.
Na noite, na morbidez da avenida que de dia pulsa - bela, na beleza real e marginal - o ciclo recomeçava com mais brilho, mais realidade. No dia a luz se esconde dela própria. As mulheres que lá estão, estão fora da vida. Não explodem em viço, em visgo, em sons. Abafam-se, como se emudecem, no tumulto dos carros, os homens, os velhos, as pessoas que têm medo do escuro. Lá, misturadas ao todo, não são ninguém definido – e estão presentes e incólumes. Na noite, onde se sorve a vida, há a vida girando na alma, há a alma sedenta de cor, há um corpo somente de vida.
Para essas mulheres, as da praça, pouco importava se deus as salvaria, como bem sabia o crente – sim: elas eram superiores ao abolicionista e ao crente. E superiores aos que insistiam na permanência. Sabiam, afinal, mover-se do centro da escuridão para a periferia da luz. Para elas o que contava era o homem em fim de carreira, eram suas salvações cotidianas.
Eu pouco posso dizer do efeito das palavras do homem no microfone sobre mim. Eram apenas fundo dramático para o abolicionista e as prostitutas – aquelas palavras davam solenidade a ambos – e isso me deixava feliz. Pelo menos podiam ser mais verdadeiras as idéias dos abolicionistas e mais digno o labor das prostitutas sob aquele som.
Mas o que me chamava atenção era o homem com microfone na mão. Tinha certeza de já o ter encontrado, à noite, no mesmo lugar onde agora pregava com tanto ardor – apontando para um, o inferno, para o outro o céu com lotes de terras a preços interessantes até para um ateu. Lembrava-lhe a face, o copo e um travesti. Lembrava-lhe o beijo comprado no rosto, a mão ousada no corpo e um grito de contentamento ao deparar-se com uma rapariga morena de seios fartos que certamente dividiu com o travesti que tivera pago antes. Lembro ainda dos três caminhando para escuridão do fim da rua - da porta de um casarão antigo abrindo-se e do lusco-fusco da claridade leve que saia à rua por um momento. Por último, recordo a sua saída – trôpego, cansado. Na mão carregava uma caixa nova. Tinha tentado cobrir com o palitó os nomes, mas sem sucesso. Lá estava escrito: aparelho de som e microfone. Era por isso que Alto Condado era linda e atraente. Suja e voluptuosa, miserável e cândida. Tão bela e contraditória em suas praças, em seus pastores cristãos, em suas noites, em seus sóis. E a cidade se desdobrava toda neste ritmo, grande que era, e se orgulhava, em cada poro, em cada beco, da sua maneira de viver, do seu caminhar de cão magro de rua – impotente e alegre -como o seu lixo.

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