quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Os Cães do Inferno - Capítulo VII


Minhas mãos gélidas queimavam com um ardor incestuoso e perseguidor. Ao chegar em casa, com os olhos fixos no aparador, onde descansavam rosas vermelhas, beijei Heloísa e escutei o som quase perdido da voz da minha filha repetindo ligeiramente: papai, o senhor viu as flores que eu mesma colhi?
Tristemente olhava em volta da sala, a poltrona, o espelho que denunciava sempre meu rosto aterrorizado pelos meus pensamentos, a velha lareira que nunca luzia, e por fim, o rosto de minha filha frente à janela que dava para o velho casarão branco. Eu tremia com um tremor longo e desesperante, e ela repetia: pai, o senhor viu as flores que eu mesma colhi ontem? A mamãe me ajudou. Não respondia, apenas andava pesadamente o curto percurso da sala escutando o eco já forte das risadas quase infantis de Áurea. Heloísa acompanhava-me querendo tirar das minhas mãos o pote de sorvete que começava vagarosamente a derreter. Não sabia porque ria, mas logo percebi que eu andava desequilibrado e sem objetivo e que, sem querer, deixara o pote de sorvete cair por sobre o tapete da sala, se derramando. Olhando ainda a janela na minha queda, pude ver dois cães sentados frente ao casarão branco. Depois tudo foi escurecendo. Chegaram ambulâncias, paramédicos e me puseram sobre uma maca dura e gelada. Imobilizaram meu pescoço, furaram-me infinitas vezes com o propósito de injetar remédios e pediram-me insistentemente que ficasse acordado - e eu desejava apenas fechar os olhos - sim. Apenas desejava sonhar mais uma vez se este fosse meu fim. Desejaria infinitamente a camponesa nos meus braços amarrados neste último bolero, e logo me dei conta de que gostaria de morrer numa dança lenta e lamuriosa. Não pediria perdão dos meus pecados à ninguém e clamaria ao demônio um último tango em Buenos Aires. -sim. Dançaria infinitamente nos salões desertos do grande casarão. Só mais um bolero - eu gritava - e mais um tango com a camponesa. E mesmo assim, gritaria à minha esposa que sempre a amara durante toda a minha vida... minha triste vida. À minha filha diria um breve adeus, pasmado e com terror, porque jamais esqueceria do leve sorriso em sua boca quando eu caía de mim mesmo. Sempre lembraria para o resto da minha vida se ainda vivesse e, carregaria nos meus olhos se pudesse viajar... - sim correndo como este carro que agora corre por essas pistas mal asfaltadas desse Alto Condado! E eu respirava o ar mecânico do balão de oxigênio e me dizia: minha filha... minha filha com seios tão lindos... Então desmaiava mais uma vez. E lá, bem no fundo das minhas entranhas, via dois cães me dilacerando o coração.

Os Cães do Inferno - I Carta dos Suicidas



Eu pergunto: qual é o maior medo humano? E um vazio tremendo me cobre o peito e nem sequer o vento alísio me chega aos pulmões, nem sequer posso rezar meu desespero por que não acredito em Deus nessas horas. E eu me respondo: é medo de morrer! Nós temos é medo de morrer! E quase gargalho sozinho pra escutar minha voz e dizer que é mentira. Mas apenas gargalho e escuto minha risada ecoando perdida no quarto. Com as mãos na cabeça levanto-me sobressaltado e com o coração palpitando de medo clamo misericórdia, compaixão... Mas logo me lembro que nenhum homem jamais escapou da morte. Então insulto-me: e você, como vai escapar ? O escuro apossa-se dos meus olhos e lágrimas correm da minha face recaindo nas minhas mãos encharcadas de medo. Um medo líquido que eu não posso prender com os dedos e surrá-lo para que vá embora. Esse medo apenas se espalha e me molha. E eu me respondo: não escapo. Ou espero, ou enfrento! Logo decido morrer com coragem.
O revolver carregado certamente está na mesa de cabeceira e minha filha acordará no quarto ao lado, quando houver o barulho - sim, e talvez até chore. Mas qual das duas mortes é melhor: a que se espera ou a que se enfrenta? Qual a de mais coragem? A com hora marcada ou a do acaso?
Suicidas: ali está o leão deitado na sombra. É uma savana e estamos na África. Não está com fome. Agora balança o rabo para espantar as moscas varejeiras, nossos anjos enviados por Deus, para nos salvar.- enquanto as moscas estiverem voando no traseiro dele estamos salvos! Uma hora depois - e já passaram dez anos- ainda estamos vivos, ele tem fastio.
Nossa morte é remediada por moscas e algumas verminoses. Agora ele nos olha com olhos lânguidos - começa a ter alguma atitude decente - e mexe a pata dianteira decidido a levantar, mas ele apenas muda de posição para não nos ver. Então corremos e esmurramos a sua cara até que se irrite o bastante para nos comer voraz e rapidamente. Ele devora as nossas vísceras e farto daquela cena, joga nossa carcaça sob o sol escaldante. Depois as moscas sentam sobre nossas costelas descarnadas e operam um milagre: renascemos de novo em forma de anjos!
Os não suicidas: estamos na África também. O leão que nos comerá é o mesmo que devorou os suicidas há pouco. Tem um fastio enorme. Se depender dele não come dentro de cinco dias e dorme um sono conturbado, mas feliz. As moscas - os suicidas - cansadas de voar, pousam na traseira do leão e descansam até a hora marcada. Nós esperamos, por que nada temos a fazer senão esperar. Lamentamos a vida dos nossos companheiros suicidas... a vida é tão boa aqui: olha só esse céu azul! Cala boca menino! Quer acordar o leão? - Já fazem cinqüenta anos ou mais. Quem é que sabe?
Nossa morte é remediada pelo sono. Ele dorme tão lindo! Nossa vida é de Deus! Que calor! O sol escaldante queima nossos miolos ao meio dia. Menino: liga o ventilador! Então as moscas voam novamente, e é chegada a hora: vão voar no pé do ouvido do leão! Ele acorda mal humorado, nos vê (os não suicidas), avança em nossa direção e finalmente nos devora. Depois as moscas levam as nossas almas e no caminho zunem uma frase bem baixinho: a verdade é que uma hora ele sairá dali e comerá nossas vísceras!